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quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

RELAÇÃO DA OBRA DE POTEIRO COM O CORDEL - 13 DE MAIO DE 1985. -


JORNAL A TARDE, SALVADOR,  13 DE MAIO DE 1985.

RELAÇÃO DA OBRA DE POTEIRO COM O CORDEL
Entrevistando Antônio Poteiro quando ele veio expor em Salvador. Uma figura inesquecível.
Uma cabeleira falha e esbranquecida e uma barba longa e desgrenhada. Na face as marcas dos anos vividos em contato permanente com o barro elaborando com os gestos das mãos os potes, que guardam a água fria para matar a sede. Anos e anos fazendo e vendendo seus potes, e deste relacionamento muito íntimo surgiu o seu nome: Antônio Poteiro. Sim porque existem muitos antônios por este mundo afora, e a sabedoria popular ensina que é preciso diferenciá-los. Este não é o Antônio de Zé Preta ou o Antônio de Alcina. Este é o Antônio Poteiro, o homem que cria os vasilhames onde guardamos a nossa água para beber. Uma tradição que ele herdou da família e os gestos foram passados com maestria. Aprendeu e evoluiu. Era preciso criar e a própria vivência lhe deu o suporte necessário para alçar vôos mais altos. O mundo rico da cultura popular, as observações do relacionamento entre as pessoas, a força da religiosidade, as crenças e descrenças de Goiás.
Um pote de autoria do artista
“Comecei a fazer cerâmica por acaso.Não sabia o que era este negócio de artes plásticas, afirma categoricamente Antônio Poteiro. Estas duas frases ditas com simplicidade durante o encontro que tivemos aqui demonstram exatamente a sua origem humilde, porém verdadeira, forte e natural. Não é preciso saber de artes plásticas para ser um bom poteiro! Não é preciso saber das escolas de artes e dos críticos eruditos que complicam e escrevem palavras difíceis, consultando os dicionários ou os livros de citações. É preciso apenas ter intimidade com a terra e saber trabalhar com os gestos das próprias mãos. E o Antônio é bom poteiro. Tão bom que passou a ser conhecido como Antônio Poteiro. O pote integrou-se a expressões, o surgimento das figuras aconteceu como uma coisa natural.

O PINTOR

Uma bela obra de Antônio Poteiro
Foi uma amiga quem primeiro o incentivou a fazer cerâmicas utilizando figuras. Sua visão foi se abrindo, e hoje, Antônio Poteiro não é conhecido apenas como um excelente ceramista, mas também como pintor. Um pintor que faz escultura quando pinta. Um pintor que transporta para a tela as suas estórias cheias de criatividade e força popular. Tudo, aliás, serve para integrar este seu mundo dividido, entre a cerâmica e a pintura. São os mendigos, os desocupados, as beatas, os padres e os loucos que andam pelas ruas de Goiânia em que ele se inspira e elabora as suas estórias cheias de variantes, por onde o espectador desatento se perde entre os muitos elementos.
Suas origens populares estão a olhos vistos. Não vê, quem não enxerga. O velho Poteiro lembra um seguidor de Antônio Conselheiro. É pintor por insistência de seu amigo Siron Franco, e foi no atelier de Siron, que poteiro teve a oportunidade de conhecer uma tela branca e as tintas industrializadas usadas na pintura.
Hoje, é difícil saber se o Antônio Poteiro ceramista é melhor do que o Antônio Poteiro pintor. No meu entendimento o artista Antonio Poteiro é bom nos dois ofícios. Já chegou inclusive a fazer algumas esculturas em madeira. “Mas não fui adiante, confessa e arremata: o meu forte é o barro. Gosto de meter os dedos no barro e vou criando as minhas figuras para compor minhas estórias”. Poteiro faz cerâmica como estivesse escrevendo uma estória, mista de verdades e invencionices. Você não sabe onde começa e termina a verdade e a fantasia. Este jogo é muito gostoso da gente tentar decifrar. É um verdadeiro quebra-cabeças construído em andares. Algumas de suas cerâmicas têm mais de dois metros de altura.

BARROCO X CARAJÁ

Antônio Poteiro ,ao fundo uma obra 
Ele define sua cerâmica como uma mistura do barroco goiano com a arte carajá.As figuras não têm joelho, nem cotovelos.Sobre suas noções de religião ele diz: “Você sabe que existem três religiões básicas: os crentes, os católicos e os espíritas”. “Eu gosto muito de fazer o Deus Balança, representando o Deus Crente, o Deus União que é o Deus Católico e o Deus Espírita que é São Francisco exorcizado, dando passes, tirando o demônio das pessoas”.
Esta estória ingênua e cheia de profundidade é uma amostra do universo de Antônio Poteiro. Ele “foi formado no mundo” e captou as coisas da roça e a religiosidade difusa do povo.
Diz ainda que existem muitos personagens que gravitam em seu universo. Como o Cabral, que era um sujeito que pedia esmola em Goiânia. Segundo conta, era um grande fazendeiro que foi mordido por uma cobra urubu. Esta cobra, ensina Antônio Porteiro, tem uma cruz na testa e mata as pessoas com muita rapidez. “Cabral tinha duas feridas nas pernas que agente via o osso”.
Mas Antônio Poteiro não fica apenas em Cabral. Tem ainda João Trapo, que era sargento, e lutou na Itália e ficou doido. Tinha oito casas de aluguel e vivia pedindo esmolas pelas ruas. Vestia-se de trapos, daí o seu nome. “Uma vez paguei uma pinga para ele e me contou todas suas bravuras lutando contra o nazismo”.

VERDADES E FANTASIAS

Portanto, estas estórias, fruto de verdades e fantasias, resultam em cerâmicas e pinturas originais. “Tenho mais recurso na pintura, porque a cerâmica é mais limitada para multiplicar as minhas figuras. Na pintura eu posso colocar várias estórias, enquanto que na cerâmica tenho dificuldade.
O velho Antônio Poteiro com
duas obras de sua autoria
Para fazer aquelas cerâmicas com vários andares eu faço um a um. Faço a base e encho de papel velho, bem socado. Quando enxuga eu faço o outro andar e assim por diante.E a Mulher parideira?“Ah As mulheres não gostaram”, revela Poteiro. Mas é o seguinte: a Mulher Paradeira é um personagem importante em sua obra. Ele representa a loira por um diabinho. Como tem muitas amigas loiras, enfrentou algumas dificuldades, porque elas não aceitaram ser representadas por um diabo. A mulher morena ele representa vestida de anjo. E tem uma explicação: “A mulher pode parir um Getúlio, um Tancredo ou um Hitler. Eu não estou atacando a mulher.
Estou é defendendo, porque mulher é a forma, é quem faz tudo. Sem elas a gente não existia”. Realmente é difícil de entender a relação entre mulher loira e o diabo.
Perguntei a Poteiro se já teve alguma mulher loira, se brigou ou foi abandonado por uma loira. Ele simplesmente riu e balançou a cabeça em sinal negativo.
Logo em seguida falou de um projeto que pretende executar. É um grande mural composto de três grandes segmentos. Vai representar o Deus Construindo, Diabo construindo e, finalmente, Homem Destruindo. E diz: “Deus com uma pomba branca o Diabo com um urubu e o homem destruindo tudo. Homem é pior que o Diabo.Mata tudo, gato, animais e o urubu não é preto”?, pergunta.
Neste mundo rico em estórias, elementos e traços da cultura popular vive e trabalha um homem de idéias simples, mas que tem uma força interior muito forte. Esta força explode em cerâmicas e pinturas que devem ser vistas com cuidado, fazendo uma leitura detalhada de casa secção, para que se chegue perto daquilo que Antônio Poteiro escreve quando faz cerâmica e pintura. Escreve estórias dessas que a gente está acostumado a ler nos livrinhos de cordel. Poteiro é um artista plástico que faz cordel.

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