JORNAL A TARDE, SALVADOR, 23 DE
JULHO DE 1984.
OS FANTASMAS DE POÇÕES NA PINTURA DE
ADILSON SANTOS
A existência do homem tem momentos insubstituíveis. Muitos desses momentos
aconteceram durante a infância, idade em que a gente não tem consciência até da
própria existência. Idade inquieta em que você está tentando afirmar-se perante
o mundo, as pessoas e as coisas que lhe rodeiam. É sempre bom, agradável mesmo,
quando você reencontra alguém que conviveu durante a infância e começam a
relembrar aqueles momentos em que viveram emoções, medos, sonhos e fantasias.
E, é exatamente esta volta que traz a atual pintura de Adilson Santos, algo que
vem de imediato identificar-se com todos aqueles que viveram sua infância numa
cidade do interior.
Adilson
é de Poções, que fica na Rio-Bahia, perto de Vitória da Conquista, e de lá ele
guarda os sonhos de sua infância que agora resolveu mostrar de público.
Mostrar, por exemplo, como a pequena matriz de sua cidadezinha “conseguia”
receber mais de 30 mil pessoas, mostrar como era tão singela a primeira
namorada, com seus cabelos grandes e seu olhar angelical. Lembrar dos fantasmas
que habitavam as ruínas de uma velha igreja e do sofrimento que passou, pois
era obrigado a caminhar por estas ruínas com destino a sua casa. Tudo isto, e principalmente
a morte de sua mãe marcaram profundamente este artista que encantou este País
com sua pintura calcada num desenho limpo e surrealista, onde os ovos, as
cadeiras e os rostos das moças apareciam firmes e límpidos. Agora as moças
parecem que saíram do surreal para o real. Veja aí a contradição quando falo
para o real, quando este real é a própria fantasia de uma infância bem vivida e
que bruscamente foi interrompida com a morte de sua mãe.
O
trabalho de Adilson Santos é calcado não apenas no desenho, agora bem mais
solto, mas acima de tudo na emoção. “É um trabalho calcado dentro de mim
mesmo”, diz o artista. Quando falo que houve mudança na pintura de Adilson é
que as figuras foram humanizadas dentro da sua linguagem fantasmagórica. Os
seus fantasmas “existiram” em sua infância e agora nos são apresentados dentro
de uma linguagem de amor e emoção.. Continuam alguns elementos, mas são
apresentados com nova roupagem. A predominância dos noturnos também está
presente. Ambiente, aliás, propício para as brincadeiras com os seus fantasmas
de Poções. Lembra Adilson Santos que mesmo quando fazia uma pintura
surrealista, “mas bem comportada”, com o enquadramento rígido do desenho e das
pinceladas, quase sempre surgiam os fantasminhas de Poções. Ele os segurava,
guardava em cadernos e os amarrava com cordões e firmeza. Como que dialogava
com eles dizendo que ainda não era chegada a hora da grande aparição, a hora do
grande avant-première. Mas seus “atores” não se conformavam insistindo em
aparecer, até que seu diretor resolveu colocá-los no palco e o resultado é este
que vemos em 26 trabalhos expostos na Galeria Época, no Rio de Vermelho.
FOI
DIFÍCIL
As
coisas aconteceram tão fácil como se pensa. Adilson Santos é exigente com o que
vai apresentar dentro da sua arte.Esta
passagem de figuras estáticas para figuras que parecem mover-se não aconteceu
num passe de mágica. Ele foi retirando os seus fantasmas do baú (dos cadernos)
e começou a desenhá-los em preto e branco. Vieram às primeiras cores, o uso da
aquarela na tela e, finalmente, a tinta óleo cobrindo a aquarela. Portanto, um
trabalho cuidadoso, de um verdadeiro profissional, que tem um nome a zelar e
que pode jamais dar pulos no escuro, porque não pode pisar em falso.
O
caminho do sucesso é tortuoso e bem sabe Adilson, órfão aos 12 anos, as
dificuldades que enfrentou. Depois de uma exposição em Vitória da Conquista, me
parece que na sede do Lions Club, resolveu vir para Salvador enfrentar a vida
como pintor. Meses depois já participava da Primeira Bienal baiana e teve todos
os seus quadros aceitos pela comissão julgadora.
Portanto,
este novo trabalho exigia um certo cuidado de Adilson Santos que precisava
pegar, como se diz na linguagem comum, “o fio da meada”, para prosseguir o seu
caminho em busca de uma expressão pictórica que viesse proporcionar a mesma
qualidade que já vinha desenvolvendo.
Lembro
certa feita que ouvi alguém perguntar se Adilson Santos era um senhor de idade.Conhecendo
o artista expliquei que era um rapaz que beirava a casa dos 40 anos. Atualmente
Adilson está com 40 anos. O cidadão ficou meio surpreso e comentou que sua
pintura anterior, embora surrealista parecia muito “bem comportada”, para um
jovem de 40 anos! Agora, quando este senhor visitar esta exposição de Adilson
vai ter outra surpresa, mas sairá muito satisfeito dentro, é evidente, da sua
individualidade.
Sim
porque esta pintura é na realidade mais jovial, afinal é a representação de
sonhos de uma infância.
Obra Jovenzinha com Lua na Cabeça e Testa Branca |
Conversando
com Adilson lembrei-me que morava em Ribeira do Pombal e que as luzes da cidade
eram apagadas, por medida de economia, às 22 horas. O motor era movido a óleo
diesel e desde aquela época custava muito caro. Portanto, todos nós tínhamos
que chegar em nossas casas antes deste horário fatal. Certa vez fiquei
brincando com outros amigos e o homem encarregado de apagar as luzes deu seus
três sinais, apagando e acendendo as luzes, imediatamente avisando o black-out.
Não liguei e permaneci brincando. De repente tudo ficou escuro e parti para
casa morrendo de medo. Ao dobrar a primeira esquina, esbarrei no vulto. Corri
desesperadamente chorando de medo. Longe, ouvi os palavrões.
Era
Aninha, uma velha prostituta que me xingava. Até aquele instante em que não
identifiquei Aninha aquele obstáculo era um fantasma! São fantasmas como estes
que Adilson Santos está botando pra fora para nossa alegria e satisfação.
Poções
é para Adilson Santos um baú cheio de fantasmas de sua infância e como sua
pintura é calcada na emoção, ela agora está bem melhor representada. Ouso dizer
que gosto muito mais desde sua nova fase que da anterior, embora faça questão
de dizer que a anterior tinha também qualidade.
Mas,
é que esta me emocionou e me identifiquei muito mais, porque relembrei dos meus
fantasmas que carregarei comigo até o fim da minha existência. Eles me são
muito caros e muito queridos.
Outro
tanto que me chamou atenção na conversa que tive com Adilson Santos, foi à
imagem que lhe passaram, ou melhor, que uma tia sua passou sobre o inferno.
A igreja matriz de Poções "onde cabia 30 mil fiéis" |
Aquilo
lhe deixou aterrorizado e só pensava numa pessoa queimada no inferno. Era um
verdadeiro sofrimento, principalmente quando lembrava que sua tia dizia que a
pessoa ficava eternamente naquele fogo terrível.
Um
detalhe curioso é que além de seus fantasmas insistirem em aparecer, Adilson
Santos lembra que há 20 anos chegou, a pintar alguns deles. Recentemente
comprou um quadro seu num leitão onde alguns desses elementos aparecem com
muito mais pujança, como se diz, agora eles botaram a cara na tela. Mas, antes
ele desenhava para pintar e agora ele pinta desenhando e com isto sua arte está
mais livre, mais emotiva e mais humana.
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