JORNAL A TARDE, SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA - 1º DE DEZEMBRO DE 1986
O EX-VOTO ENTRE A FÉ E A ARTE
Alguns ex-votos fotografados juntos por Mário Cravo Neto em seu livro EXVOTO |
O ex-voto sempre exerceu um certo fascínio em mim. Não que acredite em
milagres ou coisas afins, mas, principalmente, pela sua presença na vida dos
nordestinos.
Cresci
andando pelas estradas do interior e sempre encontrando nas encruzilhadas ou
num morro, as cruzes e os cruzeiros estes vigiando lá do alto quem passa
deixando o rastro na areia escaldante. Ao redor das cruzes e cruzeiros sempre
encontrava flores murchas e o ex-votos, colocados sorrateiramente por pessoas
que acreditam ter alcançado graças dos céus.
Na
realidade esses escultores primitivos possibilitam que essas pessoas paguem a
promessa feita. Agradeçam a graça, que acreditam ter alcançado. Não cabe aqui
discussão sobre o aspecto da religiosidade, porque o que interessa é que esses
objetos trazem uma auréola de misticismo e todos devemos respeitá-los, mesmo
aqueles que não acreditam em outras vidas.
E,
este fascínio que já vem sendo cultuado por Sante Scaldaferri, Antônio Maia e
outros, agora recebe um novo tratamento pela ótica de Mário Cravo Neto. Este
que considero o maior de todos os fotógrafos deste País. Ele consegue valorizar
tudo aquilo que fotografa, com uma sensibilidade só vista nos verdadeiros
artistas. Isto pode ser constatado na luminosidade que faz incidir sobre os
objetos, e principalmente nos ângulos que escolhe para documentá-los. Lembro
que por volta de 1944, Luís Saia que acompanhou Mário de Andrade na famosa
Missão Etnográfica, em 1938 e fez um estúdio visual do ex-voto. Agora chega
Mário Cravo Neto com toda uma experiência de anos fotografando as esculturas de
seu pai Mário Cravo Júnior e dá um banho de técnica e vitalidade. Hoje, os
recursos da própria fotografia são outros, e, portanto, mesmo que Mário Cravo
Neto tivesse seguido as pegadas de Luís Saia, já seria um acontecimento porque
uma nova visão utilizando novas tecnologias. Seu livro Exvoto é uma prova
disto.
Vejo
que Mário Cravo Neto consegue um realismo espetacular no jogo da luz e sombra,
e assim reforça toda aquela compreensão e simbolismo que o ex-voto encerra,
nestas fotos a gente pára atentamente em cada detalhe e observa o corte que
indica a boca, o nariz que quase não aparece, a sobrancelha que é apenas um
traço, semelhante a uma meia lua. Enfim, a gente sente que cada ex-voto é o
fruto do trabalho de um escultor popular que anonimamente leva o crente a
realizar a obrigação de pagar, sua dívida para com Deus.
Esta
sua exposição é suporte para o lançamento do livro onde ele reforça a
importância antropológica e etnográfica do ex-voto. A exposição está aberta na Galeria Fotóptica e dentro em breve virá a Salvador onde ele pretende lançar
seu novo trabalho na próxima quarta-feira, dia 3, na Galeria Multiplus, no
Morro do Gavaza, na Barra.
MARINHAS
DE JOSÉ BAHIA
O
mar e a areia branca das praias exercem uma presença muito forte na obra de
José Bahia. O verde das ligeiras ondulações que cercam as praias e toda aquela
gente que as frequentam são constantemente alvo de observação. O artista não
tem pressa e nem se incomoda com os modismos passageiros que sempre aparecem e
desaparecem num vaivém semelhante ao movimento das ondas.
O
azul intenso das águas deste nosso mar tropical, tão cantado e tão buscado,
nestes dias de Verão, ganham maior plasticidade nos quadros de José Bahia. Tudo
é concebido tendo por limite a linha do horizonte que ora aparece plana e ora
ligeiramente ondulada. Os coqueiros ao fundo marcando a paisagem baiana. Os
barcos e os rochedos cobertos de espuma mostram exatamente que este homem é um
paciente observador. É evidente a presença da
influência de Pancetti. Mas ninguém pode dizer que não sofreu ou sofre
influência de um mestre. O que destaco é que a obra de José Bahia não fica
apenas na influência ou na identidade da temática. Ele vai mais longe
procurando cada vez mais inserir elementos novos de técnica e composição em
busca de sua individualidade pictórica. Acho já ser possível a gente
identificar uma tela de José Bahia sem precisar ler o nome do autor na parte
direita da tela. Ele está expondo na Cavalete.
IMAGENS
DE ESCULTOR TATI MORENO
O escultor Tati Moreno retocando uma peça |
Tati
é um santeiro moderno.Trabalha
com instrumentos movidos por energia elétrica, serras que cortam o metal,
deixando no ar os sons estridentes como a anunciar a chegada de seu elenco
imaginário. São martelos possantes, tesouras que rompem a folha do latão para
possibilitar que brotem os detalhes de suas imagens.
Imagem rica em detalhes |
Como
os velhos santeiros do nordeste pernambucano, que esculpem suas esculturas em
barro ou madeira ele vai formando os volumes, através de folhas retrocidas,
dobradas e cortadas. Se nas esculturas geométricas faltavam detalhes, nestas imagens.
Tati demonstra exatamente sua habilidade em trabalhar com elementos de trabalho
reduzido. Cada detalhe é cuidado, e sempre que a gente faz uma leitura de uma
das peças descobre a sua presença, sente que por ali passou mãos hábeis
deixando a marca de sua capacidade criadora.
Além
do valor escultural suas peças são realmente muito decorativas pelo amarelo do
latão e também pela própria concepção.
Suas
imagens sofrem necessariamente a boa influência do barroco de nossas igrejas,
belas e imponentes, que estão relegadas ao abandono pelas autoridades
encarregadas da sua manutenção.
A leveza dos Três Anjos |
Saliento
o aspecto de um artista moderno como Tati Moreno não esquecer este lado tão
baiano que é o imaginário. Se antes ele cultuou os orixás em belas peças agora,
mais maduro, ele chega com maior habilidade conseguida no decorrer desses anos
para enaltecer os santos católicos. E Tati sente-se á vontade porque já
percorreu um longo caminho.
Lembro-me
do primeiro contato que tivemos quando ele ainda jovem fez uma escultura de um velho
Fusca e resolveu dar uma volta na Fonte Nova durante um jogo entre Bahia e
Vitória. Foi um sucesso. O carro parecia um besouro imenso a andar
vagarosamente sob os olhares curiosos e porque não dizer, espantados, daquele
público não muito acostumado em observar uma obra de arte. O Velho Fusca, que
virou besouro finalmente percorreu todo o estádio e retornou triunfante. De lá
para cá venho acompanhando a sua trajetória e até discordando, como na sua
presença no grupo que decorou as ruas da cidade em alguns carnavais. Não
discordando da parte plástica, muitas vezes da maneira como a escolha era
feita.
Mas,
é outra conversa. O que interessa é que Tati aí está firme e criativo á frente
de uma coleção de santos de latão, os quais estão expostos até amanhã na Época
Galeria de Arte.
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