JORNAL A TARDE, SALVADOR, SÁBADO, 1º DE
OUTUBRO DE 1977
Representando a Bahia, volta à São Paulo para participar da XIV Bienal
Internacional, o pessoal do Etsedron, que faz um trabalho integrado. Vários
meses o grupo ficou sediado em
Porto Seguro , primeiro ponto tocado pelos portugueses e que
ainda hoje conserva pequena parcela do seu primitivismo e a presença dos índios
faz renascer a cada dia a criatividade.
Assim
o pessoal do Etsedron deixa de lado o frio cavalete, o estúdio com seus
equipamentos sofisticados, as tintas industrializadas e parte para um trabalho
plástico ambiental com uma integração de outros setores como a música, dança,
teatro e fotografia. Também aqui eles com os ajudantes, hoje tão presentes nas
residências e estúdios dos artistas abastados, mas com uma grande diferença, é
que trabalham com elementos da comunidade e não tem qualquer vinculação de
empregado-patrão, Crianças, adolescentes e adultos, que trabalham com o pessoal
de Etsedron, não cruzarão os braços, porque eles estão sendo treinados e
conscientizados para continuarem trabalhando com os instrumentos e materiais
que lhes são oferecidos pela natureza.
Outra
coisa importante do projeto do Etsedron é que o grupo volta-se não apenas para
materiais oferecidos pela natureza como também é um movimento de arte com
determinadas características de brasilidade. São oito anos de trabalho, e o
grupo já marcou sua presença na arte brasileira.
DEPOIMENTO
Quero
deixar que o próprio Edison Benício da Luz fale, por seus colegas sobre o trabalho
do Etsedron:
ARTE,
TERRA, HOMEM...
Edison da Luz trabalhando com cipós |
"Foi
no fim dos anos 60. Eu estava preocupado em definir a minha linha de trabalho
que caracterizasse a minha personalidade e onde eu não sentisse que estava
fazendo uma adaptação do que recebia de fora.
Como
tive uma formação acadêmica, procurei me isolar de tudo aquilo que aprendi e me
identificar com o meu meio. A minha luta era me identificar dentro da
expressão, ligada a tudo que sinto e vivo. Naquele tempo estavam no auge as
teorias de MacLuhan de comunicação, o problema do Vietnã era explorados nas
artes plásticas, o homem na lua, todos
esses tipos de massificações. Nos próprios salões, o que estivesse dizendo
verdades nacionais, era revelado ao último plano. Quem não explorasse o Vietnã,
a lua, Biafra, o racismo, estaria por fora, quando tínhamos tudo e não havia
diferença entre o Nordeste e Biafra, mas era esta que estava no contexto."
"Sentia
que sob meus pés tinha um valor muito mais autêntico que aquele negócio
totalmente importado, que me chocava muito. Comecei a reunir artistas com as
mesmas ansiedades e queria uma sigla que não cheirasse a arte agora, espaço,
arte no tempo queria me entranhar nas raízes e achei que Etsedron, o avesso do
Nordeste, dizia isto. Como artista pobre, porque já passei por muita coisa não
preciso de muito prá reconhecer os males da pobreza. Se você pegar uma baronesa
e jogá-la no Nordeste, ela vai sair de lá como encontrou, ou no mínimo vai lhe
dar outra visão do Nordeste, talvez até romântica. Achei que como artista
cabia Amim dizer que era brasileiro e subdesenvolvido,
sem pelejo, sem falsas cores para ocultar o que existe.
Sé
daí podia partir uma arte para mim verdadeira. Não podia nem sonhar com uma
expressão que não tivesse sob os meus pés, que não conhecesse bem por dentro e
por fora, não entendesse do que se tratava, e é disso aí que entendo. Quero me
identificar como artista latino-americano dentro de muna condições.
Sabia
que poucas pessoas estavam fazendo uma coisa assim e sabia que iria transmitir
o mesmo entusiasmo que me animava porque ia usar uma linguagem que era a de
todo mundo e não só de uma pequena burguesia. É como você escolher entre levar
uma criança a um circo ou pra ver Hamlet.
De
todos os resultados o que mais me surpreendeu foi à receptividade do povo,
analfabeto rural. Em qualquer das cidadezinhas onde passamos, olham as figuras
e se identificavam com elas. Era como se vissem o ambiente deles pela primeira
vez, com outra visão. Vinham ficar conosco conversando, dando palpites, ás
vezes nos levando presentes. Ninguém pedia que se explicasse o que eram,
significava que já sabiam. Não tinha que fazer um trabalho e criar em cima uma
filosofia pra convencer, é o trabalho quem fala, não faço arte endereçada a
este tipo de público que precisa ser convencido.
No
início eu levava o Etsedron nas costas, agora sou eu que vou atrás dele.
Abriu-se uma área muito grande, exigindo conhecimentos variados. Hoje eu o vejo
como um espelho. A responsabilidade que era só minha tornou-se de todos aqueles
que trabalharam nele, e dos que estavam acompanhando o processo e se sentiram
tocados. Como disse o espanhol Verdes, artista premiado na última Bienal: isto
aqui é como um soco no artista europeu. Alguém que o veja e sinta, sabe que a
coisa tem sentido, se sente envolvido e começa a participar. O reconhecimento
maior tivemos aqui em São
Paulo , nas bienais, quando as pessoas datadas de uma
capacidade maior de ver as coisas vinham e nos diziam de sua emoção.
Quando
vimos na revista mexicana Artes Visuais o nosso trabalho discutido por críticos
como Aracy Amaral, Juan Acha e Maria Luísa Torrens, dissecado e apontado como
um possível caminho para a arte latino-americana.
EX-VOTOS
E BEATOS DE SANTE SCALDAFERRI
O pintor Sante Scaldaferri está expondo no Solar do Unhão desde ontem em comemoração aos 20 anos dedicados á arte. Uma pintura vinculada às raízes da cultura popular onde o artista explora toda a dramaticidade e a religiosidade do povo nordestino. Uma pintura forte como expressa a própria temática carregada de um misticismo a toda prova.
A
própria figura do Sante lembra um beato de fala mansa e de fácil conversa.As
caras que preenchem todos os espaços de suas telas são repetitivas, mas não
cansam. São figuras representadas pelos nordestinos quando necessitam pagar uma
promessa e fazem seus bonecos de cerâmica ou madeira colocando escondidos nos
cruzeiros, quase sempre afastados dos centros das vilas e cidades do interior.
Os cruzeiros estão localizados nos arredores, em pequenos montes como
verdadeiros vigilantes das vidas e destinos dessas localidades. Sante sabe
assim captar todo este misticismo e transportá-lo para a tela e por isto vem
marcando seu lugar no panorama pictórico da Bahia. O desenho não é apurado e
não precisava ser porque ele busca exatamente traduzir os conhecimentos
Um
detalhe curioso é que todas as suas figuras tem os olhos grandes e vigilantes
como a demonstrar que embora enriquecidos estão vivos e a qualquer momento
poderão se agrupar, como já aconteceu com milhares que seguiram Antônio
Conselheiro e outros fanáticos, que de vez em quando aparecem. A pintura de
Sante tem assim uma importância histórica muito grande, porque ele retrata esta
gente que tende a desaparecer á medida que o progresso vai chegando com as
rodovias asfaltadas, com a luz elétrica, com os receptores de televisão
instalados nas pracinhas, e, especialmente, com a invasão de turistas que só
lhe trazem malefícios. As cabeças são grandes, como também os nazistas e os
lábios grossos e curtidos pelo sol. Tenho diante de mim uma de suas telas
datada de 1976, Casa do Romeiro onde aparece um romeiro vestido a rigor, uma
mulher de longos cabelos e muitas cabeças de beatos e um boi á frente. Uma
verdadeira família reunida dentro da visão pictórica deste artista de linha e
contornos fortes, que vive cantando o misticismo da
CLYDE MORGAN: O DANÇARINO PINTOR
Uma força negra e bruta move as pernas e os braços ágeis de Clyde Morgan, este dançarino americano de sangue negro nas veias. Um dançarino excepcional conhecido e requisitado a toda hora. Mas de repente ele resolveu mostrar aos baianos que é um artista mais completo do que conhecíamos. Um artista que utiliza da tela para interpretar o seu sentimento e a sua negritude. Suas tela não são acabadas, bem feitinhas e até as molduras deixam transparecer um falso desleixo, mas que na realidade reflete a força incontida de um artista forte e despreocupado em acabamentos. O que deseja é expressar os seus sentimentos e gravar através dos pincéis os momentos vividos. Clyde acostumado a dançar em cima de palcos dançou simplesmente em cima das brancas telas, contrastando com o preto de sua pele curtida e aveludada. Um negro que conhece a força de seus antepassados acostumados a dançar sem parar nas festas, nas obrigações e nas celebrações das seitas e cultos.
Fiquei realmente surpreso quando visitei a sua exposição e lá encontrei trabalhos de qualidade, feitos entre 1966 a 1972, e, que só agora, nos brinda com uma mostra no Museu de Arte Moderna. Aliás um lugar ideal para expor os seus trabalhos, um local (Solar do Unhão) onde há alguns anos atrás muitos de seus antepassados foram explorados, e hoje, Clyde expõe triunfante.
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