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quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

SANTE LANÇA CATÁLOGO NOS SEUS 30 ANOS DE ARTE - 26 DE DEZEMBRO DE 1988


JORNAL A TARDE , SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 26 DE DEZEMBRO DE 1988

Após os festejos natalinos surge outro evento importante do movimento de arte da Bahia que é a comemoração dos 30 ANOS de trabalho do incansável Sante Scaldaferri. Ele vai lançar um catálogo-livro sobre suas atividades onde estão inseridas apresentações, reportagens e notas as mais diversas, registrando a ação do artista durante estas três últimas décadas.Também estará expondo cinco painéis e 10 quadros com a temáticas Anjos. O catálogo foi impresso em duas versões: uma três idiomas ( português, inglês e italiano) e esta em português onde acrescentou mais de 40 novas manifestações afetivas entre crônicas, notícias, reportagens e até poemas a ele dedicados, tornando-se assim, ao contrário do outro que contém somente análises críticas, mais romântico e afetivo. O evento terá seu lugar amanhã na Teresa Galeria de Arte.
Mas revela Sante Scaldaferri, por quem tenho muita admiração profissional e amizade, que esses quadros 
foram propositadamente emoldurados com elementos dourados, prateados , envernizados, etc. semelhantes às molduras populares que se usavam no princípio do século nos retratos familiares e paisagens marinhas que eram entronizados nas salas de visita. "Acho que ficaram bonitinhas", diz Sante com seu jeito sincero e honesto de ver as coisas. Aliás, essas manifestações de afetividade e até mesmo sentimentais estão em desuso e soam mal aos ouvidos de muitos porque estão acostumados com as dificuldades e até mesmo com ois tratamentos formais sem este toque humano.


   SANTE LANÇA CATÁLOGO NOS SEUS 30 ANOS DE ARTE

Sante vestiu os ex-votos com a
fraqueza dos homens
"Eles podem ser encontrados nas cruzes abandonadas à beira da estrada ou mesmo nas igrejinhas de povoados onde a civilização ainda não chegou com sua febre de modernidade. São esculpidos por gente sem cultura, mas sensíveis por acreditarem no mundo após a morte e temerem a Deus. São os ex-votos, encomendados por familiares de pessoas que acreditam ter alcançado uma graça ou mesmo beneficiados por um milagre. E assim como homens em sua grande maioria temem a morte e o que  poderá acontecer após a sua chegada, enquanto vivem, cultuam os espíritos e um ex-voto é a prova desta postura. Porém, Sante enxerga o ex-voto com toda a sua misticidade e importância, que transcede a própria concepção de quem mandou fazer ou mesmo o esculpiu em barro, cerâmica ou ferro.
Sua obra está simplesmente ligada ao ex-voto, uma manifestação e o forte quanto a sua própria             . A identificação chega a tal ponto que só enxergo diante colocado num  cruzeiro daqueles enormes, que ficam encimados, rodeado de alecrins e unhas-de-gato no alto de pequenos morros que circundam as cidades do sertão. Este é o lugar mais apropriado para entendermos o Sante Scaldaferri.
Seu físico e também seu nome, tem algo que transcendem a própria matéria e dão aquele místico que cerca o ex-voto. Conheço outros artistas que têm influência marcante em suas obras dos ex-votos.
Mas ouso assegurar que ninguém tem uma identificação tão perfeita como Sante.
Esta identificação passou do campo do imponderável para o material. E vejo as fraquezas do caráter humano incorporadas nos ex-votos. Uma dualidade digna de registro. O misticismo, a pureza do ex-voto sendo invadida propositadamente para mostrar as fraquezas do homem.
Como que a pureza do homem rude do sertão, que ainda venera o Padim Cícero. Antônio Conselheiro ou Frei Damião foi impregnada pela fraqueza que povoa os escritórios, as universidades e outros locais urbanos tão freqüentados.
Os ex-votos ganharam pernas, mentes e uma representatividade. Como que estão trabalhando numa peça de teatro e vão percorrer os quatro cantos deste mundo conturbado, tentando sensibilizar as pessoas com estampadura dos horrores da gula, da inveja do puxa-saquismo, da traição, da mentira e tantos e tantos atributos que tem os mortais.
Sante não é um artista de formação primitiva. É um erudito que sabe ser simples e com esta temática á capaz de nos mostrar quanto contemporâneo ele é ao ponto de ter acesso a qualquer mostra do que tem  sido feito ultimamente neste País em termos de artes plásticas. Além disto, Sante, dos artistas considerados realizados profissionalmente em Salvador, é o mais simples, o mais aberto, o que procura dialogar cm os mais jovens. Não vive fechado no sucesso e numa roda de poucos amigos. É irônico no falar, no pintar.

Suas formas desconcertantes muitas vezes não são entendidas por alguns. Essas pessoas, menos avisadas, sacam de imediato que seu desenho é primário. Incapazes portanto, de alcançar a ambientação mística, toda a conotação que transcende o simples desenho alcançando sua plenitude no conhecimento posterior. Não conseguem penetrar, nem sentir este mundo puro dos ex-votos ou não querem enxergar as suas próprias fraquezas estampadas nas figuras desproporcionais que ganham vida e, acima de tudo as fraquezas do caráter-humano.
Dão de ombros e continuam seu caminho mergulhados na inveja, na luxúria, na vaidade e em muitos outros atributos que normalmente as pessoas não enxergam em si próprias."
Reynivaldo Brito
Salvador-Ba, 12 de julho de 1982.

        SANTE SCALDAFERRI UM PINTOR BAIANO

"Sante Scaldaferri insere-se entre aqueles pintores que buscam na tradição o estofo de que nutrem sua pintura. Estudioso das coisas baianas, deixou de lado o eruditismo de suas primeiras composições para se  consagrar á evocação de temas e motivos essencialmente populares, o que faz todavia sem descambar para um puro e estreito regionalismo, e evitando as facilidades em que tantos resvalaram.
Não faz arte para turistas, e rigorosamente não pertence a grupinhos pelo que paga não raro o seu preço... Longe de ser um ingênuo ou um primivista, é artista de solido metier e completo artesanato, entretanto temas regionais com a visão de uma cultura universal.
Evitando o impaste e apelando para esquemas cromáticos discretos, sabe estruturar solidamente seus quadros, com o auxílio da linha, esteio maior de sua composição. Recentemente a superfície bidimensional de suas obras cresceu, mas o artista a resolve com extrema destreza, como se a sentisse mais à vontade na resolução plástica de vastos espaços, que mais e mais clamam por se libertar dos estreitos da obra de cavalete, e quem sabe aspiram ao mural.
Nesses tempos de revalorização do tema especificamente brasileiro uma revalorização em grande parte conseguida pelo cinema, mormente através da contribuição de Glauber Rocha, que não por coincidência é um dos que primeiro viram e amaram a pintura de Sante a arte de nosso expositor de agora, merece de certo um lugar de realce, ele que, antes de tantos outros, fez das coisas e tradições de sua terra o seu mundo de idéias e todo o seu repertório de formas."
José Roberto Teixeira Leite
Rio de Janeiro, ( GB) 28 de maio de 1971.

          A PINTURA DE SANTE SCALDAFERRI EM 1981

"A pintura de Sante Scaldaferri é, das manifestações culturais da Bahia de hoje, uma das mais originais e instigantes. Sua filosofia básica de reter o sentimento genuíno do povo da região, caldeando esta semente patética numa usina de paciência e lealdade, esteve sempre presente nas várias fases do processo do seu trabalho.
Desde os biótipos contornados e ingênuos, de seres racionais e irracionais com que montava suas paisagens de perplexidade e protesto, até hoje, quando as situações massacradas do ex-voto são transplantadas sem qualquer ressaibo decorativo, foi sempre um pintor da massa, do sofrimento indefeso dos desfavorecidos. Isto numa terra onde a pobreza canta e dança nas ruas., num misto de inconsciência e vocação para a felicidade.
Mas Scaldaferri, inteligentemente responde  a esta possível alienação, com uma pintura que contesta a diluição provocada pelo consumo turístico, e ultrapassa a superfície do fenômeno, atingindo o estágio sensível da carne, onde a alma se manifesta. Por isso sua pintura de hoje é difícil, assusta um pouco, atua em sobressalto, degola a indiferença. Sobre um desenho que contesta a beleza convencional do modelo humano, que deforma a agiganta detalhes de um projeto não seletivo da raça. Scaldaferri  desenvolve uma ordem de manchas, desativando a magia da paisagem, em função de um espaço conceitual e analítico onde as emoções são fixadas como insetos no painel de um colecionador. Note-se a contemplação do ciclo iniciado na percepção do ex-voto pintado, no qual o povo ressaltava a deformação, como elemento a ser corrigido pela fé e o milagre. Mesmo a falha de perspectiva escolar, a distribuição intuitiva das figuras, e a forma de marchar o fundo para justificar e integrar a tela suporte, na pungência da história a ser contada. Ao incauto parecerá que Scaldaferri hesita no manejo instrumental, quando tudo nele é intenção e segurança. Num depoimento recente, valioso pela sua lucidez e firmeza dizia o pintor Minha pintura é gente com cara de ex-voto, e não ex-voto com cara de gente. Entenda-se a partir desta chave. Num sensível avanço sobre a fase anterior. Scaldaferri não tipifica hoje suas figuras. Não são personagens do folclore, nem participantes de corrente de festas regionais que toma conta da Bahia o ano todo. È o homem baiano posto à imagem das cenografias, é o homem do Nordeste, o homem brasileiro, é o homem latino-americano, é a universalização apaixonada e incômoda de um artista continental.
Estou certo de que hoje Sante Scaldaferri é um dos grandes da Bahia, e seu estado está devendo a ele toda homenagem de seu generoso coração, porque ele está do lado menos evidente e fácil de pantomima. Ele escarva o sofrimento e celebra a resistência."
Walmir Ayala
Rio de Janeiro (RJ), 27 de agosto de 1981.


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