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quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

O HUMOR COMO FORMA DE VER OS CONFLITOS DA SOCIEDADE - 21 DE MARÇO DE 1988


JORNAL A TARDE, SALVADOR,  SEGUNDA-FEIRA, 21 DE MARÇO DE 1988

O HUMOR COMO FORMA DE VER OS CONFLITOS 
DA SOCIEDADE
Encontra-se em Salvador um excelente artista francês. Chama-se Marc Bourlier, de 40 anos, que nasceu em Saigon quando seu pai era governador no tempo que o Vietnã era ocupado pelos franceses. Mas sua  nacionalidade é mesmo francesa, inclusive toda sua formação profissional. Ele esteve na redação juntamente com sua amiga Eulanpia e aqui conversamos sobre sua visão de América Latina, especialmente do Brasil, sobre seu trabalho e o papel do artista no mundo contemporâneo..
Disse Bourlier que se esforça para ser um artista contemporâneo, acompanhando tudo que está acontecendo. Anda com as antenas ligadas não apenas para as ocorrências e eventos no setor plástico, mas com tudo que ocorre em torno deste mundo conturbado. Seu trabalho foge daquela morbidez dos que desejam ou utilizam este segmento de expressão para denunciar ou criticar. Bourlier dá um tratamento pictórico mais útil usando a ironia para fazer suas observações, suas denúncias ou mesmo quando está enaltecendo o lado fugaz das estrelas de cinema que embelezam as capas de revistas e os vídeos de todo o mundo.
Portanto, afasta a tristeza e procura dar um pouco de humor a esta vida cada vez mais difícil.
Ele lembra que o artista tem quase uma obrigação visceral de estar na frente, na vanguarda mesmo. “Através da arte experimento encontrar um caminho próprio, embora tenha dentro do que faço algumas referências artísticas à obra de Miró e Calder. Vejo muitos papéis do artista contemporâneo na sociedade.
Falando da Europa, porque conheço melhor a sua realidade, fico preocupado com a nossa ambiguidade. Temos que criar coisas novas e ao mesmo tempo viver numa sociedade onde tenho que sobreviver. Muitas vezes fazendo obras originais para estar a frente, adiante do desejo das pessoas com a preocupação que elas compreenda.
Quanto à ideia existente na França é de que o Brasil tem uma dívida do tamanho da sua extensão territorial. Poucos conhecem a respeito deste país, além disto  e do Carnaval do Rio. Aqui chegando agente tem outra idéia, do seu povo, do seu desenvolvimento e de seus problemas. Ele viu trabalhos de alguns artistas baianos e ficou surpreso com a qualidade que não deve nada aos que estão fazendo por aí. Fez uma doação de uma obra ao Museu de Arte Moderna. Tem um preço no mercado razoável, pois um quadro seu está custando em torno de US$500.

TERCILIANO JR CONSEGUE EXPRESSAR AS TRADIÇÕES NUMA LINGUAGEM NOVA

Um dos artistas negros que mais sobressai na Bahia é Terciliano Jr. Ele já esteve viajando por aí mostrando a sua arte e conseguiu uma linguagem moderna para exprimir toda a tradição.
Escrevi este texto que publico abaixo sobre sua obra. Vejam: Vivemos numa sociedade entrelaçada pelos meios de comunicação de massa, onde as mensagens são codificadas e decodificadas com uma rapidez impressionante. O homem modelo caminha bombardeado por um volume quantitativo e qualitativo de mensagens visuais, sonoras, táteis e até mesmo olfativas. Desenvolvemos a nossa capacidade de selecionar o que desejamos guardar de acordo com os nossos interesses. Começo assim, falando uma linguagem da moderna comunicação, para situar um artista que cavalga seu mundo pictórico montado em tradições centenárias, mas que soube codificá-las numa estilística contemporânea. Trata-se de Terciliano, um negro baiano, descendente de um sacerdote do candomblé, uma pessoa que já nasceu no meio dos orixás.
Uma característica forte de sua arte é que ele não ficou limitado às imagens esteriótipadas do folclorismo, partiu para uma linguagem onde os elementos principais estão preservados, dentro de uma composição em uma plasticidade moderna. Em suas telas encontramos os animais que são abatidos para Exu, as gamelas, as quartinhas onde são colocados os presentes e despachos para os santos, os tambores, as armas e outros elementos religiosos ou mesmos adereços das filhas de santo. Sua arte ganha uma dimensão extraordinária na medida em que nos mostra a sua capacidade em conceber baseado em tradições e nos permite uma nova leitura.
Aqui um pouco da biografia deste artista:
Foto recente do artista Terciliano Jr.
“No ano de 62 a 63, encontrava-me sem emprego e não estudava mais. Existia uma revista de nome O Cruzeiro aqui no Brasil e num daqueles dias encontrei um número em minha casa e deparei-me em uma das páginas com uma ilustração de moda do artista Alceu Pena e comecei a copiá-las. Daí então procurei desenvolver mais os desenhos. Mas não era aquele tipo de trabalho que eu gostaria de fazer. As figuras deste artista eram esquias e frágeis, sem nenhuma conotação com a minha realidade e tradição. Depois encontrei o gravador Edison da Luz, que introduziu-me no mundo da maneira iniciando a xilogravura. E A Garça foi o meu primeiro trabalho em xilo, dentro das tonalidades preto e branco. Mas, nem o tema nem as duas cores me davam uma base sólida para a expressão da minha personalidade. Eu venho de uma família de uma crença religiosa africana muito forte e com um peso de pioneirismo de muito respeito, que é o candomblé de Angola, um dos únicos existentes nesta terra negra que é a Bahia, o Terreiro do Bate-Folha. Que pertence ao filho de  Oxauian, Manoel Bernadino da Paixão, mais conhecido como Bernadino do Bate-Folha, que era meu tio. Então eu sabia que tinha um potencial muito maior e forte armazenado dentro de mim, e que iria extravasar, de uma hora para outra, toda aquela carga magnética acumulada de milênio de tradição de uma raça. O trabalho que elaboro hoje não é porque fulano ou sicrano falou, no ventre de minha mãe eu já ouvia os atabaques do Bate-Folha ou da Casa Branca.
Ouvia falar em Xangô, Ogun, Yansã ou Oxossi e seus símbolos, sentia cheiro do dendê e do sangue do animal santificado para Exu. Sou ou não um privilegiado? Tenho ou não a obrigação de fazer a minha arte negra, da cor da pele de minha mãe, de meu tio, da nossa pele? As coisas do meu povo e raça sempre despertaram em mim uma grande necessidade de penetração do corpo e alma para uma satisfação do meu ego artístico. Então captei as coisas mais puras e singelas e dava mais suavidade à simplicidade cotidiana da vida. As filhas de santo, os orixás, a música, a dança e seus movimentos, os símbolos, animais e objetos têm uma conotação específica no meu trabalho e eu começo a recriá-los agora dentro de uma nova visão, contrariando toda uma postura tradicionalista. A arte negra sempre se caracterizou por esta incessante busca de novas formas de expressão artística, servindo, inclusive, de fonte nas mudanças artísticas dentro do mundo capitalista. Hoje eu quero desenvolver o meu trabalho dentro da arte contemporânea, com uma linguagem nova mais com a preocupação essencial de dar uma continuidade ao que vinha fazendo, traduzindo e veiculando a nossa cultura é realidade.
A minha proposta é prosseguir nesta busca de novas formas em elementos, simbólicos, animais e objetos; não pelo simples prazer de transformá-los mas para atender a uma necessidade de expressão atual minha, ocupando este espaço que eu já tenho pela minha própria trajetória e formação cultural. Atualmente é delicado e perigoso alguém afirmar que está fazendo uma arte nova dentro da sociedade em que vivemos, onde já se chegou a extrapolar quase todos os parâmetros. Mas a minha intenção é criar situações com os elementos existentes e dar a minha interpretação à realidade que eu vivo e fantasio.
Tenho 24 anos comendo, dormindo, sonhando e vivendo com a minha arte. Comecei a expor em Salvador em 64, na Biblioteca Pública, e com vários artistas de minha geração passei pela Baiharte. Em 69, busquei no Rio e em SP um mercado para expansão de meu trabalho. E nesta curiosidade constante que é a vida artística, eu saí do Brasil em 78 rumo aos EUA onde passei dois anos expondo e experimentando uma outra realidade. Passei nesta época a trabalhar mais com as aquarelas e surgem as primeiras experiências somente com os símbolos. A volta para a Bahia em 80, por um período de três anos, serviu para reafirmar que eu estava no enfoque correto, fundindo as minhas experiências de arte e vida.
Em fins de 83, um convite para participar de um festival de arte em Los Angeles me levou para mais um período de aproximadamente dois anos nos EUA. Nesta segunda temporada participei de alguns trabalhos importantes, sendo que considero dos mais gratificantes ter ilustrado a capa de um disco de Flora Purim em 85- Humble People - Gente Humilde, não somente por estar ela entre as melhores cantoras de jazz do USA, reconhecida pela belíssima pessoa que é Flora.
Agora, como já foi noticiado neste jornal, estou assinado à capa de seu novo disco que aqui será lançado em breve. Também em 88, ano do Centenário da Abolição (/) da escravidão, devo participar de alguns trabalhos, dentro e fora do Brasil, mas por enquanto são apenas convites e propostas.
Bem, esse tempo de trabalho cobrou de mim um novo toque de maturidade e experiência no decorrer desses anos. A minha vivência por duas vezes nos Estados Unidos proporcionou-me ver e sentir formas de mundos diferentes e que eu posso viver nos dois mantendo minha identidade cultural.
Por isso tenho um comportamento de traços e formas completamente nova para mim. É uma linguagem contemporânea expressando uma tradição sem imitá-la. Os animais, os símbolos e as gamelas estão sempre na mira dos meus pincéis para um encontro de suposição linear, bloqueando formas corretas de um outro elemento, ou um objeto dentro de um conceito estético tradicional.
E eu estou tendo a mesma felicidade no meu reencontro com a madeira, ou seja, a escultura.
Como a minha pintura atual reflete uma estética bastante escultural, eu a transfiro para a madeira e o resultado tem sido altamente satisfatório para mim. E é um processo que tende a crescer depois de alguns resultados positivos.
Não tenho como escapar. Eu nasci e me criei numa terra que está sempre convidando o artista a descobrir formas e movimentos. A sua beleza, magia e encanto para mostrar ao mundo a potencialidade deste traço.
A Bahia me deu formas, cores, magia e encanto para a minha caminhada pelo mundo Dona Zilda deu-me  Paula para toda essa explosão de cores e vida na minha arte. Gerada por ela, criada pelo tempo e vivendo a vida comigo.

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