JORNAL A TARDE, SALVADOR, SEGUNDA-FEIRA, 21 DE MARÇO DE 1988
O HUMOR COMO FORMA DE VER OS
CONFLITOS
DA SOCIEDADE
DA SOCIEDADE
Encontra-se
em Salvador um excelente artista francês. Chama-se Marc Bourlier, de 40 anos,
que nasceu em Saigon quando seu pai era governador no tempo que o Vietnã era
ocupado pelos franceses. Mas sua
nacionalidade é mesmo francesa, inclusive toda sua formação
profissional. Ele esteve na redação juntamente com sua amiga Eulanpia e aqui
conversamos sobre sua visão de América Latina, especialmente do Brasil, sobre
seu trabalho e o papel do artista no mundo contemporâneo..
Disse
Bourlier que se esforça para ser um artista contemporâneo, acompanhando tudo
que está acontecendo. Anda com as antenas ligadas não apenas para as
ocorrências e eventos no setor plástico, mas com tudo que ocorre em torno deste
mundo conturbado. Seu trabalho foge daquela morbidez dos que desejam ou
utilizam este segmento de expressão para denunciar ou criticar. Bourlier dá um
tratamento pictórico mais útil usando a ironia para fazer suas observações,
suas denúncias ou mesmo quando está enaltecendo o lado fugaz das estrelas de
cinema que embelezam as capas de revistas e os vídeos de todo o mundo.
Ele
lembra que o artista tem quase uma obrigação visceral de estar na frente, na
vanguarda mesmo. “Através da arte experimento encontrar um caminho próprio,
embora tenha dentro do que faço algumas referências artísticas à obra de Miró e
Calder. Vejo muitos papéis do artista contemporâneo na sociedade.
Falando
da Europa, porque conheço melhor a sua realidade, fico preocupado com a nossa
ambiguidade. Temos que criar coisas novas e ao mesmo tempo viver numa
sociedade onde tenho que sobreviver. Muitas vezes fazendo obras originais para
estar a frente, adiante do desejo das pessoas com a preocupação que elas
compreenda.
Quanto
à ideia existente na França é de que o Brasil tem uma dívida do tamanho da sua
extensão territorial. Poucos conhecem a respeito deste país, além disto e do Carnaval do Rio. Aqui chegando agente
tem outra idéia, do seu povo, do seu desenvolvimento e de seus problemas. Ele
viu trabalhos de alguns artistas baianos e ficou surpreso com a qualidade que
não deve nada aos que estão fazendo por aí. Fez uma doação de uma obra ao Museu
de Arte Moderna. Tem um preço no mercado razoável, pois um quadro seu está
custando em torno de US$500.
TERCILIANO JR CONSEGUE EXPRESSAR AS TRADIÇÕES NUMA LINGUAGEM NOVA
Um
dos artistas negros que mais sobressai na Bahia é Terciliano Jr. Ele já esteve
viajando por aí mostrando a sua arte e conseguiu uma linguagem moderna para
exprimir toda a tradição.
Escrevi
este texto que publico abaixo sobre sua obra. Vejam: Vivemos numa sociedade
entrelaçada pelos meios de comunicação de massa, onde as mensagens são
codificadas e decodificadas com uma rapidez impressionante. O homem modelo
caminha bombardeado por um volume quantitativo e qualitativo de mensagens
visuais, sonoras, táteis e até mesmo olfativas. Desenvolvemos a nossa capacidade
de selecionar o que desejamos guardar de acordo com os nossos interesses.
Começo assim, falando uma linguagem da moderna comunicação, para situar um
artista que cavalga seu mundo pictórico montado em tradições centenárias, mas
que soube codificá-las numa estilística contemporânea. Trata-se de Terciliano,
um negro baiano, descendente de um sacerdote do candomblé, uma pessoa que já
nasceu no meio dos orixás.
Uma
característica forte de sua arte é que ele não ficou limitado às imagens
esteriótipadas do folclorismo, partiu para uma linguagem onde os elementos
principais estão preservados, dentro de uma composição em uma plasticidade
moderna. Em suas telas encontramos os animais que são abatidos para Exu, as
gamelas, as quartinhas onde são colocados os presentes e despachos para os
santos, os tambores, as armas e outros elementos religiosos ou mesmos adereços
das filhas de santo. Sua arte ganha uma dimensão extraordinária na medida em
que nos mostra a sua capacidade em conceber baseado em tradições e nos permite
uma nova leitura.
Aqui
um pouco da biografia deste artista:
Foto recente do artista Terciliano Jr. |
Ouvia
falar em Xangô, Ogun, Yansã ou Oxossi e seus símbolos, sentia cheiro do dendê e
do sangue do animal santificado para Exu. Sou ou não um privilegiado? Tenho ou
não a obrigação de fazer a minha arte negra, da cor da pele de minha mãe, de
meu tio, da nossa pele? As coisas do meu povo e raça sempre despertaram em mim
uma grande necessidade de penetração do corpo e alma para uma satisfação do meu
ego artístico. Então captei as coisas mais puras e singelas e dava mais
suavidade à simplicidade cotidiana da vida. As filhas de santo, os orixás, a
música, a dança e seus movimentos, os símbolos, animais e objetos têm uma
conotação específica no meu trabalho e eu começo a recriá-los agora dentro de
uma nova visão, contrariando toda uma postura tradicionalista. A arte negra
sempre se caracterizou por esta incessante busca de novas formas de expressão
artística, servindo, inclusive, de fonte nas mudanças artísticas dentro do
mundo capitalista. Hoje eu quero desenvolver o meu trabalho dentro da arte
contemporânea, com uma linguagem nova mais com a preocupação essencial de dar
uma continuidade ao que vinha fazendo, traduzindo e veiculando a nossa cultura
é realidade.
A
minha proposta é prosseguir nesta busca de novas formas em elementos, simbólicos,
animais e objetos; não pelo simples prazer de transformá-los mas para atender a
uma necessidade de expressão atual minha, ocupando este espaço que eu já tenho
pela minha própria trajetória e formação cultural. Atualmente é delicado e
perigoso alguém afirmar que está fazendo uma arte nova dentro da sociedade em
que vivemos, onde já se chegou a extrapolar quase todos os parâmetros. Mas a
minha intenção é criar situações com os elementos existentes e dar a minha
interpretação à realidade que eu vivo e fantasio.
Tenho
24 anos comendo, dormindo, sonhando e vivendo com a minha arte. Comecei a expor
em Salvador em 64, na Biblioteca Pública, e com vários artistas de minha
geração passei pela Baiharte. Em 69, busquei no Rio e em SP um mercado para
expansão de meu trabalho. E nesta curiosidade constante que é a vida artística,
eu saí do Brasil em 78 rumo aos EUA onde passei dois anos expondo e
experimentando uma outra realidade. Passei nesta época a trabalhar mais com as
aquarelas e surgem as primeiras experiências somente com os símbolos. A volta
para a Bahia em 80, por um período de três anos, serviu para reafirmar que eu
estava no enfoque correto, fundindo as minhas experiências de arte e vida.
Em
fins de 83, um convite para participar de um festival de arte em Los Angeles me levou
para mais um período de aproximadamente dois anos nos EUA. Nesta segunda
temporada participei de alguns trabalhos importantes, sendo que considero dos
mais gratificantes ter ilustrado a capa de um disco de Flora Purim em 85-
Humble People - Gente Humilde, não somente por estar ela entre as melhores
cantoras de jazz do USA, reconhecida pela belíssima pessoa que é Flora.
Agora,
como já foi noticiado neste jornal, estou assinado à capa de seu novo disco que
aqui será lançado em
breve. Também em 88, ano do Centenário da Abolição (/) da
escravidão, devo participar de alguns trabalhos, dentro e fora do Brasil, mas
por enquanto são apenas convites e propostas.
Bem,
esse tempo de trabalho cobrou de mim um novo toque de maturidade e experiência
no decorrer desses anos. A minha vivência por duas vezes nos Estados Unidos
proporcionou-me ver e sentir formas de mundos diferentes e que eu posso viver
nos dois mantendo minha identidade cultural.
Por
isso tenho um comportamento de traços e formas completamente nova para mim. É
uma linguagem contemporânea expressando uma tradição sem imitá-la. Os animais,
os símbolos e as gamelas estão sempre na mira dos meus pincéis para um encontro
de suposição linear, bloqueando formas corretas de um outro elemento, ou um
objeto dentro de um conceito estético tradicional.
E
eu estou tendo a mesma felicidade no meu reencontro com a madeira, ou seja, a
escultura.
Como
a minha pintura atual reflete uma estética bastante escultural, eu a transfiro
para a madeira e o resultado tem sido altamente satisfatório para mim. E é um
processo que tende a crescer depois de alguns resultados positivos.
Não
tenho como escapar. Eu nasci e me criei numa terra que está sempre convidando o
artista a descobrir formas e movimentos. A sua beleza, magia e encanto para
mostrar ao mundo a potencialidade deste traço.
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