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sábado, 24 de maio de 2025

ANDERSON AC DAS RUAS PARA A ACADEMIA E GALERIAS

O artista Anderson AC falando da sua arte.

O artista Anderson AC é um dos novos nomes da arte baiana que trafega em várias linguagens como a pintura, graffiti, colagem, fotografia digital, vídeo e a arte postal. Fez nos últimos anos uma série de trabalhos focados nas imagens e documentos familiares, e nas lembranças de suas vivências no bairro onde residia com seus pais. Este arcabouço lhe serve para reflexões e posicionamentos que transfere para sua arte, a qual efetivamente tem um forte conteúdo de contestação dessa realidade que vivemos  de exclusão social. É uma pessoa de fácil diálogo que se expressa com clareza sobre seus objetivos e o seu papel de artista dentro desta sociedade que vive em constante transformação. Não fica esperando as coisas acontecerem, ao contrário, Anderson AC faz as coisas acontecerem. Criou em 2015 a Pinacoteca do Beiru onde instalou seu ateliê e toca um projeto com o objetivo de aproximar a comunidade local com as artes visuais. Ele vem compartilhando o espaço e o seu conhecimento de quinze anos de estrada de artista visual com os moradores, especialmente com os jovens. O espaço ainda não está totalmente construído, mas o Anderson AC na medida do possível vai trabalhando para a realização deste seu sonho. A Pinacoteca fica localizada na rua Direta de Tancredo Neves, no fim da Estrada das Barreiras, em Salvador. O bairro do Beiru é um dos mais populosos da Cidade e compõe uma área onde residem muitos trabalhadores de múltiplas atividades tanto fabris como de serviços. 

Graffiti feito por Anderson AC na Estrada
do Coco, Litoral Norte da Bahia, em 2017.
O artista Anderson AC começou, a exemplo de muitos jovens oriundos dos bairros de periferia, a pichar os muros e fachadas de imóveis abandonados ou subutilizados da Cidade. Era para ele a maneira de ter uma visibilidade pela sociedade. Disse que se orgulhava ao ver a sua caligrafia ali gravada mostrando a sua presença. Da pichação solitária passou a se juntar com outros pichadores. Se reuniam na Ladeira de São João, no bairro do Beiru, local que denominaram de Gotham City. Ali discutiam e escolhiam os locais a serem pichados, e saíam em grupo cada um deixando por onde passava a sua marca. Esses registros para Anderson AC trazem uma significância de protesto, uma linguagem política. Esta fase da pichação durou de 1990 a 1995. Da pichação chegou ao graffiti nos anos 2000, e se juntou ao coletivo 071 Crew fazendo várias intervenções nos muros e fachadas de imóveis de Salvador. Este período em que pichou e grafitou deixou nele alguns traumas resultantes de episódios que vivenciou quando foi flagrado algumas vezes por policiais, e isto certamente reflete no seu discurso poético e em sua arte até os dias de hoje.

Pichadores e grafiteiros reunidos na
Gotham City, no bairro do Beiru,
em Salvador,  1990.

Um vizinho que ele chamava de tio era um entalhador famoso e tinha uma barraca ao lado do Mercado Modelo, na Cidade Baixa. Vendo a situação do jovem o chamou para trabalhar com ele. Tratava-se do entalhador José Garcia Hegouet, que assinava apenas Hegouet, e até hoje vários estabelecimentos comerciais na área do Centro Histórico ostentam placas de sua autoria, e também fazia entalhes que eram vendidos no interior do Mercado Modelo. Certo dia um amigo deste seu tio conversando na barraca falou das Oficinas do MAM e dos cursos que ali eram ministrados. Foi aí que o Anderson AC prestou a atenção na conversa e resolveu procurar saber como fazia para se matricular num desses cursos. Conseguiu a matrícula e foi ser aluno de Zu Campos aprendendo a fazer entalhes e esculturas. Em seguida cursou cerâmica com Bethânia Vargas, Desenho com Isa Moniz e passou a vivenciar a dinâmica do Museu. Aos sábados ia para os shows de jazz realizados no Solar do Unhão e lá reencontrava inclusive seus colegas da pichação.

                                               BELAS ARTES

Obras de autoria de Anderson AC, 2021.

Fez o primário na Escola Rosa de Carvalho, na Ladeira do Ypiranga, 85, na Cidade Nova. A escola já não existe, e no imóvel funciona hoje a Academia Champion, onde são treinados os mais famosos lutadores brasileiros de muay thai. Quando estudava o ginasial no CEEPS, que funcionava no bairro do Campo da Pólvora, pichou a fachada da instituição e sua mãe teve que pagar para repintar. Terminou sendo expulso da escola, e foi depois concluir o curso médio no Instituto Isaias Alves, no bairro do Barbalho. Ao concluir o ensino médio decidiu fazer vestibular de Licenciatura em Desenho para a Escola de Belas Artes, da Universidade Federal da Bahia. Lá também reencontrou vários colegas oriundos da rua do movimento de pichação e da grafitagem. Disse com orgulho “somos a primeira turma que veio deste movimento de rua para a academia entre eles estão Márcio MFR, Marcelo Dimk, Ananda Nahu, Rodrigo Izolag, (nike) Marcos Costa (Spray Cabuloso), dentre outros.”

Este díptico é uma representação dos
caminhos perigosos que percorreu até
sua arte ser reconhecida.


Sua passagem pela academia foi marcada também por interrupções do curso a ponto de ter que se matricular por três vezes. Deixou a Licenciatura de Desenho e Plástica quando viu que teria dificuldade de ensinar numa escola formal. Foi então que resolveu se transferir para o Curso de Bacharelado em Artes Plásticas. Demorou mais de cinco anos para concluir a graduação na EBA, porque segundo ele, o graffiti estava em alta no mundo inteiro, ganhando  maior visibilidade e até reconhecimento. Os grafiteiros passaram até a ser chamados por pessoas do marketing de grandes corporações, principalmente para ambientar locais de eventos de marcas de roupas. Adiantou Anderson AC que “nosso trabalho era original. Eu mesmo fazia uns desenhos neoconcretos circulares inspirados na obra de Rubem Valentim.” Quando perguntei se sempre faziam seus graffitis  a noite ele revelou que não, muitas vezes saíam por volta de cinco ou seis horas da manhã, porque inclusive era a hora melhor para fazer as fotografias dos graffitis que faziam por causa da luz. Nesta época surgiram os Salões Regionais Bahia e eles participaram. Mas, a rua era o principal objetivo, a plataforma preferida para se expressarem.

Obra Arqueologia do Agora - Selfie na
Trilha Para Uma Nova Trilha, de 2022.
Chegaram a fazer um mural para o Ministério da Cultura, na lateral do prédio da Caixa Econômica Federal, da Avenida Sete de Setembro, trecho do Orixás Center, que dá para o Politeama. Este trabalho anunciava o início do Plano Nacional de Cultura. Reconhece que a visibilidade foi muito significativa. Lamentou “que os salões regionais acabaram, e reconhece que existe hoje uma tentativa de retomar, mas ainda tímida. Também houve uma iniciativa de fazer nova bienal da Bahia, mas não prosperou”. Tem esperança que esses eventos voltem a acontecer, e mesmo que o circuito de arte venha a florescer com a mesma pujança e significado dos anos 90. Contou certo dia no ano de 2010 estavam pintando um mural na orla e parou um rapaz e começou a conversar. Depois soube que era o Daniel Rangel, atual Diretor do Museu de Arte Contemporânea da Bahia. Criou um relacionamento profissional passando o Daniel a fazer algumas curadorias de exposições do artista.

                                      EVOLUÇÃO

Anderson AC com criança exibindo obra 
que fez no projeto na Pinacoteca do Beiru
.
Chegou o momento de transferir e registrar a arte analógica que faziam pichando e grafitando  para a arte digital. Primeiro usaram a plataforma Orkut e depois o Fotolog. Foi quando passaram a publicar seus graffitis e desenhos . Ganharam mais ainda  visibilidade. Lembra Anderson AC que “só podia colocar no Fotolog uma imagem por dia e tinha os horários determinados para postar.”

Segundo a Wikipedia o Orkut foi uma rede social filiada ao Google criada em 24 de janeiro de 2004 e desativada em 30 de setembro de 2014. Seu nome é originado no projetista chefe, Orkut Büyükökten, engenheiro turco do Google. O alvo inicial do Orkut era os Estados Unidos, mas a maioria dos usuários foram do Brasil e da Índia. Já o Fotolog foi desativado em 2019, apesar de ter sido uma rede social muito popular no início dos anos 2000.

Estas duas ferramentas digitais foram  importantes para os grafiteiros baianos porque passaram a conhecer outros grafiteiros não apenas brasileiros como também do exterior. Neste intercâmbio chegaram a viajar para outros estados, e também vieram uns do Rio de Janeiro para cá do Grupo Mutirão Mete Mão.
Objeto de parede feito a partir de 
 tessituras e folhas retalhadas, 2025.

Passaram a conhecer toda uma rede de grafiteiros e fizeram um intercâmbio durante três anos. Circularam em mais de trinta bairros de Salvador com o Grupo 071 levando a cultura de rua para seus moradores, e tinha inclusive uma sonorização especial chamada Ministério Público. Portanto, mesmo matriculado em Belas Artes ele continuava atuando na grafitagem, e se considera mais um autodidata influenciado pela cultura de rua do que pela academia. Demorou cerca de cinco anos  para se graduar devido a sua atividade como grafiteiro, problemas pessoais e outras intercorrências que aconteceram, inclusive chegou a quebrar o tornozelo necessitando de uma intervenção cirúrgica para colocação de alguns pinos.  
Atualmente montou um segundo ateliê no Edifício Cidade de Aracaju, na zona do Comércio, na Cidade Baixa, em Salvador, e lá passa grande parte do seu tempo envolvido em suas criações. Seu trabalho vem a cada dia sendo mais apreciado e elogiado, participando de eventos importantes como exposições aqui, em outros estados e no exterior , e da Feira de Arte SP, que acontece todos os anos em São Paulo.

                                             RASGOS E TIRAS

O artista em seu ateliê na Cidade Baixa
diante de uma trama que está tecendo
para uma nova obra.
Sua arte é repleta de hitórias e 
lembranças de suas vivências inclusive sempre está presente em suas falas a tragédia que vivenciou com o envolvimento de seu único irmão com as drogas, resultando na sua morte. Na conversa que tivemos quando lhe indaguei porque ele após pintar a tela faz rasgos e tiras dando a princípio a ideia aos desavisados de que não ficara satisfeito com o resultado da pintura. Porém, não é nada disto, ele com este gesto intencional faz a desconstrução do suporte tradicional da obra. Isto começou como resultado de sua observação e da sensibilidade que lhe é inata. Vejamos: Seu irmão deixou um filho que foi criado pela esposa. Depois do falecimento do pai seu sobrinho o procurou, ocasião em que aproveitou para fotografá-lo. Com as fotografias em mãos   resolveu pintar o sobrinho utilizando um pedaço de lona velha de caminhão como tela, que tinha encontrado abandonado num desses locais onde grafitou. No momento que estava pintando percebeu que o pedaço de lona tinha um rasgo, e ao terminar ficou refletindo sobre o efeito daquele rasgo na sua pintura. Nominou a obra de Ferida Aberta – Mateus Conhece a Tua História, e até hoje mantém a pintura no acervo da Pinacoteca do Beiru. Daí foi um passo para que passasse a rasgar e depois cortar em tiras os suportes de  suas obras. O encontrei envolvido em outro processo criativo de usar as tiras para fazer tramas, e em seguida passa a pintar. O efeito visual e plástico é muito bom. Como podemos observar o Anderson AC sempre está procurando novos caminhos, novas maneiras de mostrar a sua arte através de suportes que rompem com o tradicional.

                                        TRAJETÓRIA E EXPOSIÇÕES 

O artista Anderson AC nasceu em vinte e nove de junho de 1979 no bairro da Baixa do Bonfim, na Cidade Baixa, em Salvador. Foi registrado com o nome de Anderson Alves Cunha, filho do funcionário do Banco Econômico da Bahia Antônio dos Anjos Cunha e d. Vera Lúcia Alves Cunha. Seu pai era gráfico e trabalhava na tipografia do banco. Destacou que tem como uma das boas lembranças de seu pai é que ele era organizado e tinha uma caligrafia muito bonita.  Com a intervenção do Banco Central em 1995 no Banco Econômico, que completara 160 anos de funcionamento, a família enfrentou dificuldades. Nesta época, ainda criança, sua família foi morar no bairro da Cidade Nova perto de seus avós maternos. Casou teve uma filha, e hoje já no seu segundo relacionamento teve mais duas filhas, e fez questão de ressaltar a importância da família como um lastro de afetividade.
Obra Vaidosa, spray,acrílica sobre lona 
de algodão, de 2012-2019.
Consta no seu portfólio que a partir de 2007 participou de uma coletiva do Grupo 071 Crew chamada de Original Vandal Style; 2010 - Exposição - A Três Pontes, na II Trienal de Luanda; 2011 -A Mostra Arte Lusófona Contemporânea, no Memorial da América Latina, em São Paulo-SP; Afetos Roubados no Tempo, no Centro Cultural da Caixa, em Salvador-BA; Exposição Muros, coletiva que reuniu onze grafiteiros baianos, na Galeria do Ferrão, no Pelourinho, também em Salvador-BA; Exposição em Évora, Portugal fez uma ocupação /  intervenção na sala do Capítulo, no Convento de São Francisco, Montemor o Novo, em Portugal; Exposição Álbum de Família , na  Galeria Soso de Arte Contemporânea Africana, em São Paulo-SP;  em Estrasburgo, França, na Galeria do Conselho da Europa; participou da SP Arte. Foi aí que o galerista baiano Paulo Darzé prestou a atenção em seu trabalho, e a partir de 2012 passou a ser representado por ele até hoje. Mostrou muita gratidão ao galerista, ressaltando que este relacionamento está sendo muito importante para continuar a sua trajetória; 2013  – Exposição Circuito Triangulações , no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, Recife-PE; Exposição no Museu Nacional da República , em Brasília-DF; Exposição na Galeria Paulo Darzé, Salvador-Ba; 2016– Exposição O Diário de Bordo ou o Livro dos Dias, Galeria Agora, no Conselho da Europa, Estrasburgo, França; Em 2017 fez uma exposição que chamou O Diário de Bordo ou O Livro dos Dias, na ACBEU - Associação Cultural Brasil-Estados Unidos ; em 2019 Anderson AC apresentou sua Pintura Muralista, num dos pilares da resistência artística visual da arte negra no Brasil, o Museu AfroBrasil, em São Paulo. Segundo escreveu na época o curador e Diretor do Museu o artista Emanoel Araújo: “Anderson AC é um artista baiano proeminente com uma potente produção marcada pela pintura grossa e expressionista, e a relação entre murais urbanos e a consciência sobre as contradições de um mundo cheio de diferenças sociais, e estranhezas religiosas.”

NR- As fotos são de autoria de Reynivaldo Brito, Lígia Aguiar e do arquivo digital  do artista.

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