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segunda-feira, 8 de outubro de 2018

RUBEM VALENTIM : O TEMPO É SUA ANGÚSTIA

ARTES VISUAIS
 Jornal A Tarde, segunda-feira, 14 de julho de 1980
 Texto Reynivaldo Brito




Após 13 anos voltava à Salvador o pintor Rubem Valentim , isto ocorreu em julho de 1980, e no dia 14 deste mês publiquei uma reportagem de uma página inteira com este título.


Veja o texto na íntegra:
Treze anos depois, volta à Bahia o artista Rubem Valentim. Uma das grandes expressões plásticas do país e um dos poucos que resiste às influências européias. Uma resistência heróica, que é fortalecida por seu axé e pos sua vontade em preservar e cultuar toda a força da cultura afro-brasileira que carrega em suas veias. Inquieto, emotivo e, acima de tudo, lúcido, Valentim tem muito o que dizer especialmente aos jovens artistas, preocupados com correntes e estilos alienígenas . Vivendo no Planalto Central, pretende agora implantar nos arredores da Capital Federal um pedaço da Bahia. Mas, acha que ainda é pouco, e, além deste centro cultural que vai funcionar em Brasília, pretende abrir um atelier na Gamboa para servir de pouso baiano. 
Foto de 7 de janeiro de 1992 O artista,Ivo Vellame  e eu conversando sobre a arte brasileira.
“O tempo é a minha grande preocupação – uma das minhas angústias é ver chegar o tempo final sem poder realizar tudo o que imaginei. Se nasce em coflito com o mundo e/ou o enfrentamos e o deglutiamos ou perecemos. Creio que os artistas ou sensitivos, obviamente, resultam disso e da maneira específica como reagem, criam essa coisa que se convencionou chamar arte – ou como querem atualmente , antiarte, resulta no mesmo – e desafiam o tempo, esta sua maior preocupação, já que o vê fluir, ir-se embora, aproximar-se a morte.Sentindo na carne uma triste solidão, fiz do fazer minha salvação. Artista liberto, libertador, faço meus exercícios plástico-visuais lutando com todas as minhas forças para ser mais humano, mais tolerante nesta época de insólita violência”.
Este é um pequeno trecho do “Manifesto Ainda que Tardio”, do artista Rubem Valentim, criador de uma linguagem plástica-visual ligada aos valores míticos profundos da cultura afro-brasileira. Inquieto, erudito, e muito lúcido, Valentim é um homem capaz de traduzir sua criação plástica e mítica para uma linguagem compreensível e que certamente contribuirá para o entendimento da arte que se faz hoje no Brasil. Amado ou odiado, este artista é inegavelmente um dos mais representativos de uma arte que se quisermos dizer assim brasileira, ligada às suas raízes negras, ligada à cltura afro, com a qual tomou ciência desde os primeiros anos de sua vida, quando sua velha tia frequentava o candomblé e cultuava os orixás mais significativos do culto.
“A arte é um produto poético, cuja exist6encia desafia o tempo e por isso liberta o homem. Isso me afeta de uma maneira total, porque sou um indivíduo tremendamente inquieto e substancialmente emotivo. Talvez, precisamente por isso, busco ávido, na linguagem plástica visual que uso uma ordem sensível, contida, estruturada. A geometria é um meio .Procuro a claridade, a luz da luz. A Arte é tanto uma arma poética para lutar contra a violência como um exercício de liberdade contra as forças repressivas: o verdadeiro criador é um ser que vive dialeticamente entre a repressão e a liberdade.”
Durante o depoimento , do qual participei como entrevistador, confesso que fiquei entusiasmado com a lucidez de Rubem Valentim. Parece um jovem adolescente – só que lúcido – que carrega consigo uma imensa vontade em fazer e emoção. Agora mesmo está construindo um centro cultural em Brasília, que será um pedaço da Bahia plantado em pleno Planalto Central, e por outro lado, procura deixar em sua velha Bahia um pouso com alguns trabalhos para continuar bebendo o axé que tanto serviu de força à sua criação. Ele mesmo revelou, durante o depoimento, que “tive a maldição de sair mais sensível que meus irmãos. Sou um cara inquieto que quer fazer coisas. E desde que me conheço, que sou artista. E sempre gostei de cores e criar.O criador é inconformado e/ou por convicção”.

                                                                     QUEM É

Rubem Valentim nasceu em 9 de novembro de 1922, no Maciel de Baixo, número 17,num pequeno sobrado, hoje conservado pela Fundação do patrimônio Históricoe Artístico da Bahia. Morou no Beco do Seminário e, em seguida, na Gamboa, onde até hoje residem seus pais. É de família humilde e seu pai por ser filho ilegítimo foi encaminhado ao Colégio dos Órfãos de São Joaquim, repositário naquela época dos filhos das mucamas, dos filhos dos mulatos e das negras com brancos. Relembrando sua infância no Maciel, Valentim dissse que certa vez encontrou na rua um caco de vidro azul e partiu para apanhá-lo, mas uma garota mais ligeira pegou o caco de vidro. Inconformado, deu-lhe um empurrão e uma dentada porque queria de qualquer forma aquele caco, pois estava entusiasmado com as cores que refletiam com os raios de sol.
Mas , sua primeira iniciativa foi fazer paisagens e figuras para presépios que todos os anos sua mãe gostava de armar nas proximidades do Natal. Neste época já morava na Rua Futuro do Tororó, e também frequentava as festas populares e os candomblés. As pessoas diziam que ele tinha Omolu, Oxalá e Oxum.Assim, começava instintivamente seu gosto plástico e sua identificação com as manifestações religiosas afros. Preocupado com os problemas místicos, com este grande desafio existencial do homem seguiu pela vida. Estudou odontologia ( contra a sua vontade ) e ainda exerceu durante um ano a profissão de dentista. Na década de 40, lembra-se que pintava paisagens e naturezas mortas. Mas, surgia na Bahia alguns movimentos, ecos do Movimento de 22, no Sul do país. O Arco e Flexa, com Carvalho Filho, Godofredo Filho e muitos outros, e depois a Revista Cadernos da Bahia, com Genaro de Carvalho ( nessa época fazia marinhas) . Valentim fazia sua “pintura secreta”. Não mostrava a ninguém.Porém, foi relizada uma exposição de Lívio Abramo, Bonadei, Segall, Cícero Dias e Di Cavalcanti organizada pelo Marques Rabelo. Nesta exposição foi apresentado o que existia de mais significativo nas artes do Brasil. Era Vasconcelos Maia que liderava Cadernos da Bahia e que contou com a orientação de José Valadares ( embora de uma geração anterior) e deste movimento ainda participavam Wilson Rocha , Claudio Tuiti, Heron de Alencar, Vivaldo Costa Lima, Mário Cravo Júnior, Carlos Bastos, Lygia Sampaio ( que deixou de pintar) e depois Jenner Augusto e Carybé. Quem descobriu que Valentim estava pintando foi Vasconcelos Maia, que mostrou alguns trabalhos a Aldo Bonadei o qual disse mais ou menos assim :Este jovem é uma surpresa e um dos que pode realizar alguma coisa. Tem futuro.”


Depois desta mostra foi organizada pela então Casa da França uma exposição de belas reproduções dos grandes mestres da arte mundial. Foi um novo mundo para Valentim,que recebeu um impacto violento e passou a devorar livros sobre arte na biblioteca de José Valadares. Daí, passou a estudar copiando os principais mestres , porém nunca perdeu sua autocrítica e queria a todo custo encontrar sua linguagem plástica. Mas, este tempo Valentim não renega, pelo contrário, chega a afirmar que feliz daqueles que pegam boas influências , mas é preciso , antes de tudo, encntrar sua própria linguagem plástica. “E , foi por isto que retomei as minhas fontes. Quando fraquentava o condaomblé ficava extasiado com aquele mundo encantado das danças , e das músicas. Era o meu mundo”.
“Minha arte tem um sentido monumental intrínsico. Vem do rito , da festa.Busca as raízes e poderia reencontrá-las no espaço, como uma espécie de ressocialização da arte, pertencendo ao povo. É a mesma monumentalidade dos totens, ponto de referência de toda tribo. Meus relevos e objetos pedem, fundamentalmente, o espaço. Gostaria de integrá-los em espaços urbanísticos, arquitetônicos e paisagísticos.”
“Meu pensamento sempre foi resultado de uma consciência de terra , de povo. Eu venho pregando há muitos anos contra o colonialismo cultural, contra a aceitação passiva, sem nenhuma análise crítica, das fórmulas que nos vêm do exterior – em revistas, bienais, etc. E a favor de um caminho voltado para as profundezeas do ser brasileiro, suas raízes, seu sentir. A arte não é apanágio de nenhum povo, é um produto biológico vital”.
Naquela época discordava de algumas pessoas devido a subserviência à cultura européia.Era o concretismo europeu.Como construtivista geométrico, com ligações muito grandes com suas raízes. Mantinha sua linha singular e a diretriz que desenvolve até hoje. Veio o movimento de cisão e surge o neoconcretismo do Rio de Janeiro, contra o concretismo matemático, mais impessoal. Não assinou o manifesto.
Alguns anos depois foi para a Europa onde manteve contato com a verdadeira arte negra nos museus.A arte negra que hoje não se faz mais na África . Não confundir com a arte negra de fundo de quintal, para agradar aos turistas, que se produz por lá . Viu, também , na Europa e África, muitos copiando Picasso, Braque e muitos outros, fenômeno que ocorre até hoje no Brasil. Conti nuava resistindoe lembra-se que Roger Bastide lhe disse certa vez que o que fazia agora é o que talvez o negro venha a fazer daqui há 50 anos, quando redescobrir suas origens. No festival de arte negra que participou, a África se fez presente através de seus trabalhos, dizia Bastide. Isto, porque muitos, estavam e estão fazendo uma contra-fração da arte negra baseados no folclore. “Como sou um cara que mantenho as minhas raízes e tenho uma consciência muito forte de nacionalidade, fiquei feliz com isto. Esta afirmação veio fortalecer a minha consciência artística, o meu compromisso com as coisas ligadas a mim”.
Quando retornou da Europa , entre 1966 a 967, Rubem Valentim veio participar como convidado da I Bienal Nacional de Artes Plásticas realizada na Bahia, no Convento do Carmo, onde mostrou cerca de trinta trabalhos e ganhou o prêmio no valor de C$5 mil cruzeiros, “pela contribuição à arte brasileira”. Este prêmio gerou uma polêmica muito grande. A inquietude e a força criadora de Valentim voltavam a incomodar os insensatos. O mesmo veio a se repetir na XIV Bienal Internacional de São Paulo, quando apresentou o Templo de Oxalá, o qual foi renegado por alguns, que não chegaram nem a conhecer o trabalho, pois estavam comprometidos com outros artistas e linguagens.
“Intuindo oi meu caminho entre o popular e o erudito , a fonte e o refinamento – e depois de haver feito algumas composições, já bastante disciplinadas, com ex-votos, passei a ver no instrumentos simbólicos, nas ferramentas do candomblé, nos abebês , nos paxarôs, nos oxés , um tipo de “fala”, uma poética visual brasileira capaz de configurar e sintetizar adequadamente todo o núcleo de meu interesse como artista. O que eu queria e continuo querendo é estabelecer um design ( que chamo riscadura brasileira ) , uma estrutura apta a revelar a nossa realidade – a minha, pelo menos – em termos de ordem sensível. Isso se tornou claro por volta de 1955-56, quando pintei os primeiros trabalhos da sequência que até hoje , como todos os novos segmentos, continua se desdobrando”.
O seu templo de Oxalá – “O muro como suporte de obra. No muro, um painel com símbolos , relêvos de madeira brancos, num fundo azul profundo. Dimensóes de 14 m de largura por 4 m de altura. Além de 20 esculturas emblemáticas, brancas, em madeira de diferentes alturas, no chão um tapete verde englobando tudo, uma área de 200m2. Era o Templo de Oxalá, expressão maior da arte de Valentim, que transbordava nos salões frios e europeus da bienal paulista, uma ambiência de plasticidade sacra. O Tempo de Oxalá é a síntese do seu trabalho.
E, o crítico Theon Spanudis afirmava: “Pergunta-se tanto qual é a verdadeira arte brasileira. Tarsila do Anaral, entre 1923 e 1930 foi a primeira a criar um mundo plástico novo, de excepcional nível estético, partindo da realidade brasileira. O segundo foi Volpi, de 1950 em diante. O terceiro, cronologicamente , é Rubem Valentim, o primeiro a brotar em inúmeras obras e criações inéditas todo este mundo mágico e espiritual das entidades étnicas, marginalizadas no continente americano. Esta é a verdadeira arte brasileira. O resto é folclorismo, ou versões brasileiras das modas internacionais”.
Esta lúcida afirmação de Spanudis, que concordo plenamente, reflete exatamente o pensamento de muitos daqueles que enxergam o horizonte e veêm a necessidade de um voltar às coisas que nos rodeiam. Reflete a sensibilidade dgente que sente as coisas que estão por aqui e acham que não é preciso buscar a tristeza européia, que resulta no fazer uma arte secundária. E Rubem valentim é, nestas poucas palavras , um batalhador pela coisa brasileira. Um artista consciente que se rebela contra a colonização e dependência cultural. Ele mesmo lembra que tivemos uma herança barroca e quando veio a Missão francesa, confundiu tudo, justamente quando o barroco sofria influ6encia tropical. Veio o academicismo atéo o Movimento de 22. Mas, continuou resistindo e o Nordeste brasileiro é talvez um núcleo natural de resistência, embora existam as aldeias globais que massificam e destroem. Isto, porque são fndamentadas nas referências européias.
“- Tudo que foi dito acima é o meu pensamento há cerca de 25 anos . Hoje, vejo com satisfação que artistas criadores maduros e jovens inquietos voltam-se, buscam, tomam consciência mais profunda da cultura de base, das raízes culturais da nação brasileira. Esse mundo mítico e místico, poético, às vezes ingênuo, puro e profundo porque entranhando nas origens do ser brasileiro. Transpor criando, no plano de linguagem e dar o salto para o universal, para a contemporaneidade de toda essa poética,m sem se recorrer a intelectualismos estéreis, é que é o x do problema.
                                            
                               CONCLUINDO

A arte brasileira só poderá ser produto poético autêntico quando resultado de sincretismos, de aculturações sígnicas (semíotica/semiologia não verbal) das culturas formadoras da nossa nacionalidade de base ( branco-luso-negro-índio), acrescidas com a contribuição das culturas mais recentes, trazidas pelos diferentes povos de outras nações e que, aqui nesse espaço, Brasil-Continente, comum a todos, se misturam criando um sistema de brasilidade cultural de caráter singular, de rito, mito e rítmo que sejam inconfundíveis, apesar da famigerada aldeia-global. O fundamental é assumir a nossa identidade de povo em termos de nação.