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Caetano vive inventando e refletindo. |
Acabo
de entrar no ateliê de um pensador e talvez o mais reflexivo artista baiano. Começo a observar pelos cantos
vários objetos: cabeças brancas e negras numa mesinha e no chão, obras com
rostos em estilo expressionista, uma televisão moderna que serve de monitor
para um potente computador Macintosh, uma escultura feita de um pedaço do
tronco de pau brasil, um grande pano vermelho dependurado numa parede, depois fiquei sabendo que era um trocador de roupas que ele comprou numa feira livre. Enfim,
ainda tem vários outros objetos e tudo me dá uma sensação de caótico, embora esteja em processo de mudança na
realidade tem uma lógica no mundo onírico por onde transita o criativo Caetano
Dias. Em seguida me convida a sentar diante da tv-monitor e começa a apresentar
alguns vídeos que ele chama de poéticos que fez sobre seus pensamentos que se
transformaram em criações e nos remetem às mais diferentes interpretações. Ao término
de cada vídeo procurava entender o que o artista queria transmitir e para minha
surpresa ele disse que a interpretação de cada um é válida. Sendo jornalista
que trabalhou por décadas com a objetividade queria também saber através o seu
spoiler a interpretação que o Caetano Dias dava a cada um daqueles vídeos poéticos.
Confesso que eram bem diferentes das que imaginei e isto me deixou intrigado.
Volto a perguntar o que acontece quando projeta estes vídeos e se as
interpretações dos presentes coincidem com as suas. Ele dá um riso controlado e
diz: “Muito difícil. Alguns chegam perto. Cada um interpreta de uma forma e isto
é o que interessa.”
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Caetano Dias com suas telas do seu autorretrato. |
Sua
arte não se restringe ao olhar os scaths de um vídeo poético ou mesmo a um muro ou
labirinto construídos com açúcar. Estas obras conceituais nos remetem a pensar,
nos levam para um mundo de possibilidades, de visões e questionamentos, e em seguida
passamos a imaginar a significância dos muros e dos labirintos que nos
apresentam fisicamente ou mentalmente. Além de pensador e reflexivo Caetano Dias é um
provocador porque por menos informações ou erudição que tenha o espectador ele
fará a leitura dessas obras dentro do seu mundo e vai começar a se questionar
procurando entender e saber de outras pessoas o que o artista quis dizer com
aquelas imagens dos vídeos poéticos, nas pinturas, objetos , esculturas e nas obras conceituais. Na conversa que tivemos disse que escolheu
inicialmente a linguagem da pintura para se expressar. Ainda trabalhava na
Caraíba Metais, no Polo Petroquímico, de Camaçari, na Bahia, e depois de nove anos decidiu deixar a empresa e se dedicar exclusivamente às artes. Sabia desde o
início que a pintura era uma porta inicial e que iria se expressar em várias outras
linguagens, o que realmente vem ocorrendo através a utilização de meios como o cinema, a fotografia, a digitalização de imagens,
apropriação e construção de objetos e os transformando em arte. Não abandonou a pintura.
Tudo caminha dentro dos momentos criativos de Caetano Dias. Diante de mim estão por exemplo duas obras expressionistas que são autorretratos.
DESEJO DE CRIAR
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Caetano com um futuro violoncelo em processo de construção. |
Caetano mesmo nos finais dos anos 80 quando saiu do
polo petroquímico já tinha a intenção de se jogar na arte de corpo e alma.
Quase simultaneamente a isto já trabalhava com vídeo, fotografias e desenho artístico e técnico.
Era o chefe coordenador do setor multimeios. Este trabalho lhe deu mais compreensão e técnica apurada. Não fez a Escola de Belas Artes e sim foi
estudar Letras, na Universidade Católica de Salvador, mas ao sair do trabalho
teve que optar pela arte. “Optei pela arte e acho que foi assertivo. Meus pais
na realidade não queriam que me dedicasse à arte, porque ser artista naquela
época não era uma boa carreira para um filho. Porém nunca fizeram uma oposição
firme. Desde criança gostava de pintar, esculpir e a arte sempre esteve em
minha vida. Fiz alguns cursos livres, mas o domínio técnico e capacidade de
invenção e descobertas de novos meios eram presenças no meu dia a dia.” Disse
que por ter trabalhado na Caraíbas Metais o ajudou a exercitar o uso da
fotografia, do vídeo e do desenho técnico e artístico, e mesmo por ser uma
indústria de beneficiamento do cobre e de outros produtos, esta alquimia também
lhe interessava. E por se interessar por este processo alquímico isto refletia
nas coisas que tentava. "Uma das características do meu trabalho é de tentar e
refletir sobre o que faço. Venho também desenvolvendo textos sobre meus trabalhos,
que é uma das últimas etapas deste processo criativo. Outra forma de me
expressar com os textos críticos da minha arte e na literatura, inclusive
acabei de concluir meu primeiro conto com quase quarenta páginas. Enquanto vou continuando com meus vídeos
poéticos que muito me encantam e tenho muito prazer em fazer, adianta Caetano Dias.”
OS
VÍDEOS POÉTICOS
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Janiele rodando seu bambolê na laje de uma casa numa favela em Salvador. |
"No
vídeo O Mundo de Janiele trata de algumas coisas que são importantes para mim.
Tem três minutos, e a ideia é uma pessoa jovem que rotaciona um bambolê em volta
do próprio corpo indicando uma órbita. Este movimento de rotação do aro em
torno de si indica a própria construção da identidade que é um processo de
formação. Você tem aí um dado importante sobre a identidade e a
individualidade, e a rigor todo ser humano está em processo de formação. A
adolescência é apenas uma fase rápida e densa da vida onde tudo muda rapidamente.
Por outro lado, no travelling completo com o aro gira em sentindo oposto reforçando
mais uma vez a ideia de translação e de rotação formando um sistema cósmico,
quase metafísico que é indicado pelos movimentos. Quando ela gira o bambolê em
torno de si, o mundo vai se movimentando e um movimento leva a outro", diz Caetano Dias. Escolheu gravar
à tarde e a câmara estava posicionada para que o sol quando baixasse formasse
uma áurea na cabeça dela. "E neste momento ela é o centro do universo. Ai mais
uma vez temos uma dimensão muito além do mundo que ela está rodando e o sol que
faz transcender aquele universo," explica Caetano Dias.
Ao
assistir o vídeo fiz uma leitura um pouco diferente, mas alguns elementos que imaginei
coincidiram com o pensar do criativo e reflexivo Caetano Dias. Porém, confesso
que mesmo assim ainda ficou longe desta sua ideia poética. E na conversa que
fluiu prazerosa ele me respondeu que quando apresenta o vídeo as leituras são
as mais variáveis possíveis e que vê isto com muito alegria porque a arte não
pode ter apenas uma leitura, senão ela morre. A arte tende a ser aberta a
várias leituras e interpretações. "Temos que ter várias leituras de pessoa a
pessoa e isto é muito importante e incentivador. A interpretação da poesia é
livre. O pensar para ele é a coisa mais importante", entende Caetano Dias.
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personagem depois de nadar enche o barco de água até desaparecer com a embarcação no fundo do mar. |
Neste
outro vídeo poético a concepção, o roteiro, a ideia original, a
fotografia, e a primeira montagem são de sua autoria. Depois chamou um amigo para dar uma finalizada na edição, e reconhece que ficou bem melhor. O nome do vídeo é Água, e o personagem foi
interpretado pelo artista plástico Carlos Rodrigues, conhecido por Carlinhos Rodrigues
que trabalhou em A Tarde como programador visual, e faleceu precocemente.
Ele aparece nadando sem ver o horizonte e de repente encontra um velho barco
que já tem pouco água dentro. Sobe no barco e com um balde plástico vai
enchendo o barco de água até que ambos desaparecem no fundo do oceano.
Segundo Caetano Dias é alguém que vem nadando sem rumo, sem horizonte e continua nadando até que encontra um velho barco em meio aquele mundo de
água. O barco tem um pouco de água no casco e ele encontra um recipiente. Ao invés de retirar a água do barco recolhe mais água do mar e vai
enchendo o barco até que juntos vão afundando e desaparecendo. Ele diz que o
vídeo é curtinho tem uns três minutos de duração, mas tem um rico universo signífico.
A questão não é esta. A construção de conceito deste vídeo poético é que uma pessoa partiu
do inicial para pegar o espectador pelo pé. Vem nadando sem rumo, sem
horizonte. A leitura segundo Caetano é que ele é o próprio barco e o barco a
extensão do seu corpo e da alma . O mar também é ele ou a extensão dele.
Quando coloca água no seu corpo que se confunde com o barco está fazendo um mergulho
em si mesmo que é todo o oceano, que é o ser. Cada ser é um oceano de
sentimentos, de beleza, de dores, de alegrias e de solidões. Com esta visão
poética e única do artista que quase sempre não coincide com as das pessoas que assistem os vídeos
perguntei ao Caetano se ele costuma dar alguma explicação depois de exibi-los
ou deixa que as pessoas se manifestem. Respondeu com sua calma , voz baixa e pausada "quando perguntam costumo explicar, mas deixo que fluam as interpretações as mais variadas. É uma grande provocação
ao pensamento."
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O pescador entrando no lago em busca do seu barco. |
Outro
vídeo poético de Caetano chamado 1978-Cidade Submersa versa sobre a cidade de Remanso que foi
encoberta pelas Águas do Rio São Francisco para a construção da Barragem do Sobradinho.
Aparece um pescador que vai entrando no lago em direção a velha caixa d'água da cidade que ainda permanece parcialmente sem ser encoberta pelas águas até
encontrar o seu barco e daí sai navegando para cumprir sua missão diária de
pescar. Ele navega e tira sua sobrevivência das águas que cobriram sua cidade e
suas memórias. O vídeo leva a pensar no grau de sentimentos que o
desaparecimento de uma cidade provoca em seus antigos habitantes. Quase tudo
fica submerso em nome do progresso e da necessidade de mais energia para que o
país possa se desenvolver. Após exibir as pessoas são provocadas a dar suas
leituras sobre o vídeo que tem um poder impactante grande, especialmente nas
pessoas que viveram aquele episódio.
A
RABECA
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Rabequeiros Eder Fersant e d. Domingas. |
O artista Caetano Dias tem um documentário de pouco mais de 70 minutos de duração sobre o instrumento
rudimentar e popular na zona rural brasileira que é a rabeca. É um instrumento rudimentar de cordas friccionadas e seu corpo normalmente não tem um acabamento refinado, e é encontrado especialamente na zona rural. Tem de três a cinco cordas de aço e mesmo de tripas de animal. Filmou entre os
municípios de Irecê e Correntina. O filme versa sobre a possível existência ou
inexistência da rabeca na Bahia. Este instrumento está em processo de desaparecimento,
mas ainda tem presença na zona rural de Goiás e de outros estados brasileiros, inclusive na Bahia. Inicialmente o roteiro
surgiu da necessidade que ele teve de falar sobre o instrumento que era
presente no conto que escrevia. Uma coisa foi se conectando com a outra e
resultou no documentário. Ele diz que imaginou inicialmente o instrumento do
conto Água que estava escrevendo seria uma rabeca que apareceu em suas memórias de criança nas feiras
livres e em frente as igrejas das cidades do interior onde morou. Foi aí que conheceu
em Irecê o jovem Eder Fersant fabricante e tocador de rabeca e na fazenda
Santo Antônio no município de Correntina, no extremo oeste da Bahia a d. Domingas da Rabeca que é uma exímia tocadora do instrumento, uma senhora com quase
noventa anos de idade. Também visitou outras cidades e encontrou alguns
tocadores de rabeca, mas nem todos entraram no documentário. Chegou a conclusão
que o instrumento que imaginara no conto não era a rabeca. Durante a pandemia
aproveitou para reescrever o seu conto que segundo Caetano Dias será realmente
sua estreia na Literatura. O conto versa sobre o Deus africano que aqui chegou
durante as navegações que traficaram milhares de escravos africanos e com eles veio um capitão de uma nau que trouxe o seu diário de bordo. O conto se desenrola em
Canudos e ele já fez um total de dezesseis pequenos ensaios sobre algumas obras
que versam sobre a história de Canudos e Antônio Conselheiro. Por descobrir que a rabeca não era o instrumento arcaico que imaginou passou a considerar a ideia de construir alguns até encontrar aquele que mais se aproxima do que está no conto. De posse de alguns tacos de snooker , cabaças, um pedaço de osso, cordas e outros objetos vem também se dedicando a construção desses instrumentos arcaicos até encontrar aquele que mais se aproxima do que imaginou no conto.
O PENSADOR
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Detalhes de obras de Caetano Dias de 2015-2019. |
O
artista Alberto Caetano Dias Rodrigues ou Caetano Dias nasceu no distrito de Bonfim de Feira, município de Feira
de Santana, na Bahia, em sete de agosto de 1959. Filho de Isabel Marques Rodrigues
e de Cleonice Dias Rodrigues, tem três irmãos, sendo dois homens e uma mulher. Passou sua infância em várias
cidades, sendo a maioria do tempo em Feira de Santana. Morou em Lapão, Irecê, Distrito
de Bonfim de Feira, Feira de Santana e finalmente em Salvador. Ao falar de seu
pai informou que era um pequeno empreendedor fabricante de jurubeba, uma bebida
retirada da fruta da jurubeba que é um arbusto que aparece muito nos campos e
pastos das fazendas em nosso país, fabricava cachaça e até mesmo sabão em barras para vender.
Estudou
o primário no colégio Municipal Joselito Amorim, em Feira de Santana e depois
fez o vestibular para Letras na Universidade Católica de Salvador, mas não
chegou a concluir o curso.
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Uma ação com o trocador de roupas que o chamou de Trocador de Corpos. |
" Uma das características do meu
trabalho é de tentar e refletir sobre o que faço. Venho também desenvolvendo
textos sobre meus trabalhos, que é uma das últimas etapas deste processo
criativo. Outra forma de me expressar com os textos críticos da minha arte e na
literatura, inclusive acabei de concluir meu primeiro conto com quase quarenta
páginas. Enquanto vou continuando com
meus vídeos poéticos que muito me encantam e tenho muito prazer em fazer confirma Caetano Dias.”
EXPOSIÇÕES
E ACERVOS
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Instalação Delírios de Catarina, com cabeças feitas de açúcar. |
O artista feirense Caetano Dias tem obras nos
acervos da Casa de Las Americas, em Havana, Cuba; Museu de Arte Contemporânea
de Feira de Santana, Bahia; Museu de Arte Moderna da Bahia, Salvador; Unama
Galeria de Arte, em Belém do Pará; Museu AfroBrasil em São Paulo; Coleção
Gilberto Chateaubriand - Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; Museu de Arte
Contemporânea – Centro Dragão do Mar, em Fortaleza, Ceará; Museu Berardo de Lisboa,
Portugal – Fundação de Arte Moderna e Contemporânea – Coleção Berardo. Fez cursos:
2009 em Le Fresnoy e na Cite Internationale des Arts, ambos na França; 2009 na
Can Xalant, em Barcelona, na Espanha;2008 no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo; 2005 – Fundação
Derouin, em Quebec, no Canadá, e em 1994 participou do Workshop Cultural em
Museus, em Nova Iorque, nos Estados Unidos.
Fez
exposições individuais em 2010 na Paulo Darzé Galeria de Arte; 2006 – Galeria de
Arte Marilia Razuk, em São Paulo; 2003 – Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro; 2002 – Galeria de Arte Marília Razuk, São Paulo; 2002 – Museu de Arte
Moderna da Bahia, Salvador; Paço das Artes – Temporada de Projetos 2001/2002,
São Paulo; 2001 – ICBA – Instituto Cultural Brasil Alemanha, Salvador; 1999 –
Paulo Darzé Galeria de Arte, Salvador; 1995 – Galeria de Arte Rubem Valentim,
Brasília, DF; 1995 – Museu de Arte Moderna da Bahia; 1994 – Casa de Las
Americas : Ritmos Visuais, em Havana, Cuba;1993 – Anarte Galeria de Arte, Salvador;
1989 – O Cavalete Galeria de Arte, Salvador. Participou ainda de mais de
oitenta salões e exposições coletivas fora do país e em outros estados brasileiros.
REFERÊNCIAS
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Instalação Lago-Indigente, de Caetano |
Segundo
o professor Eric Cone que é artista, curador e professor da Ecole Nationale des Beaux Arts de Bourges, na França, “No seu vídeo, O Mundo de Janiele, que foi destaque
no Paço das Artes, em São Paulo, e adquirido pelo Museu Berardo de Lisboa e que
tive o prazer de apresentar em 2009, ele nos faz penetrar nesta “concrete love
jungle” da favela. Ele grava uma menina brincando de bambolê: à primeira vista,
esta cena nos parece simples e lúdica com a a musiquinha lancinante e infantil,
parecendo chegar a uma caixa de música. Pouco a pouco, na repetição do
movimento e a aparição lenta do rosto e logo total da menina, reinando no
centro da favela, é a alteração da imagem e sua mensagem se impõe..... Mas,
além da doçura e da beleza quase idílica desta cena, na espiral obcecante de O
Mundo de Janiele, se percebe, em realidade, um encarceramento no qual Janiele é
forçada a sufocar par todo o sempre, conservando a qualquer preço, a miséria
sem esperança das prendas para a maturidade. E esta obra tão sensível e justa,
em suas múltiplas ambiguidades traduz toda a arte de Caetano Dias, onde a
gravidade se superpõe à meiguice, a dignidade à vulnerabilidade, e
reciprocidade”.
Diz
o André Parente artista e pesquisador do audiovisual e das novas tecnologias da
imagem que “A arte de Caetano Dias tem como estratégia primordial investir no
campo fértil das experimentações sociais, como um espaço de relações que
resiste de todos os lados a massificação e uniformização. Não se trata de uma
arte que toma o social como tema, como muitas vezes se diz no campo da cultura,
mas de fazer do social um campo de forças aberto, a ser explorado, questionado,
renovado, erotizado. Na verdade, a obra de Caetano nos propõe um novo corpo,
novas relações sociais e culturais, ao nos propor imagens que transforme as
condições gerais de produção de subjetividade. A obra de Caetano concentra-se
cada vez mais nas relações que seu trabalho irá criar com o público ou na
invenção de novos modos de relações sociais....”