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sábado, 13 de abril de 2024

A SAGA DA CERAMISTA BAIANA SELMA CALHEIRA

A Selma Calheira com alguns
dos seus Homens de Barro.
Vou falar hoje de uma mulher com pouco mais de 1,60 que nasceu numa fazenda de cacau na época em que a produção baiana era respeitada e a comoditie tinha uma alta valorização no mercado internacional. O dinheiro não era problema para os cacauicultores baianos que viviam viajando entre o Rio de Janeiro e Paris como fossem tomar um ônibus ou trem para a periferia de Salvador ou outra cidade brasileira.  Foi neste ambiente que nasceu em quatro de janeiro de 1958 a Selma Abdon Calheira filha de Rômulo Teotônio Calheira e d. Enésia Abdon Calheira. Eles moravam numa fazenda chamada de Terra Boa e ela tinha mais seis irmãos. Seus avôs eram imigrantes libaneses e na época chovia muito na região do município de Ibirataia, localizado na região cacaueira, distante 344 Km de Salvador. Selma lembra da dificuldade de frequentar a escola primária porque iam da fazenda até a cidade montados em burros e cavalos para estudar o primário, isto por volta da década de 60. Então sua mãe decidiu morar na cidade e dois anos depois veio a falecer, e Selma tinha apenas nove anos de idade. Assim seu pai se viu com a dupla missão de tocar os negócios da fazenda e também cuidar de sete filhos menores. Foi então que os filhos maiores passaram a ajudar a cuidar dos menores, e lembra que ela cuidou de três irmãos menores por algum tempo. Como seu pai tinha certo prestígio os amigos e políticos locais o incentivaram a se candidatar a prefeito e depois de alguma relutância ele resolveu aceitar o desafio e tornou-se prefeito. Com quinze anos de idade era a Selma Calheira quem acompanhava o pai nas solenidades fazendo o papel da primeira dama.

Selma em cima de um andaine trabalhando 
na cabeça de uma das esculturas.
Quando perguntei de onde veio este dom artístico de dar vida ao barro inerte, transformando em esculturas monumentais e objetos de design foi aí que a Selma Calheira lembrou que sua genitora Enésia Abdon Calheira sempre procurava fazer belos arranjos utilizando materiais que encontrava na fazenda como flores, palhas, ramos, gravetos e folhas de palmeira. “Ela fazia arranjos incríveis e a nossa casa sempre vivia arrumada como se fosse um dia de festa”, falou com um misto de orgulho e saudade de sua mãe. Ela também quando criança começou a se interessar pelo barro como acontece com muitas crianças da zona rural que fazem panelinhas, bois, cachorros e outros animais que têm contato para brincar. Este contato com o barro desde criança para a maioria se perde no tempo, mas a Selma ao contrário quando adulta foi se reencontrar com o barro e nunca mais parou. Hoje é uma ceramista de nome nacional e internacional.

Pessoal que trabalha na cerâmica durante a
cerimônia da Queima que  faz anualmente.
Voltando ao pai prefeito ela bem jovem decidiu criar uma biblioteca para que as crianças da Cidade e mesmo os adultos encontrassem livros para aumentar seus conhecimentos. Foi assim que fundou a primeira biblioteca pública de Ibirataia, interior da Bahia, e passou a dirigir de 1975 a 1977. De lá para cá a biblioteca foi mudando de lugar a cada nova administração municipal até que a fecharam. Selma ficou muito chateada, mas soube recentemente que vão criar um Centro Cultural na Cidade e que a biblioteca vai voltar a funcionar. Ela não tem ideia se o acervo da antiga biblioteca ainda existe guardado em algum lugar.

Esculturas de negras. Selma
sofre com as cópias de suas 
obras por inescrupulosos.


Já morando em Salvador enquanto estudava o segundo grau fez alguns cursos livres de pintura na Galeria Panorama e em seguida estudou na Escola Baiana de Arte e Decoração – Ebade, em 1977. Depois foi morar no Rio de Janeiro na casa de um amigo de seu pai o médico Othon Fernandes que a recebeu como uma filha, conta ela. O objetivo era o vestibular para Arquitetura, terminou cursando Licenciatura em Educação Artística, na Faculdades Benett, no Rio de Janeiro, turma de 1982. Como o triste episódio da vassoura de bruxa arruinou a produção de cacau na Bahia seu pai enfrentou alguma dificuldade financeira e a Selma se viu forçada a voltar. Foi aí que começa a sua saga. Ela não voltou. Passou a procurar emprego, e foi vender livros, mas não gostou deste trabalho. Resolveu fazer pequenos objetos de cerâmica e também a comprar alguns produtos para revender. Assim foi sobrevivendo até que um dia procurou a direção da Faculdades Integradas Benett e tentou uma bolsa de estudos para terminar o seu curso. Conseguiu uma bolsa parcial e em troca trabalhar numa espécie de ong o Instituto Cultural do Povo, em 1982, que funcionava o bairro da Gamboa, no Rio de Janeiro, localizado atrás da Central do Brasil e era mantido pela faculdade ligada à igreja metodista. No Instituto tinham oficinas de várias profissões e lá encontrou-se com a ceramista Rosa Werneck e passou a trabalhar e ensinar aos alunos como mexer com a argila.

Um dos amplos galpões da área de produção 
de sua cerâmica na cidade de Ibirataia-Ba.
Foi se empolgando e partiu em 1981 para o Parque Lage onde sempre são oferecidos cursos livres de pintura, escultura, cerâmica e outras atividades artísticas. Queria estudar com a professora e ceramista Celeida Tostes. Como acontece na vida sempre as coisas não acontecem como a gente espera. Não havia mais vaga. Então se matriculou no curso de escultura com Jayme Sampaio. Porém, pelas suas habilidades ganhou a confiança do professor que ensinava no turno matutino e a Celeida Tostes no vespertino. Assim passou a ser  assistente de Jayme Sampaio e o professor deixava as chaves da oficina com ela que ficava trabalhando e entrava pelo turno vespertino. Com esta sua disposição e demonstração de suas habilidades na arte da cerâmica terminou conseguindo estudar com a Celeide Tostes e também a ser sua assistente, o que ela tanto almejava. A professora Celeida veio a falecer em 1995 aos 74 anos de idade.

Selma trabalha no torno em
uma das suas esculturas.
Trabalhou muito pesquisando argilas e decidiu participar de exposições. Criou a Oficina Arte do Fogo e passou a trabalhar com alguns ajudantes. Foi nesta época em 1983 que o famoso cineasta brasileiro Cacá Diegues estava montando sua equipe para as filmagens de Quilombo. Por sorte procuraram a Celeida Tostes que a indicou, e o pessoal da produção do filme a procurou porque ele queria fazer vários objetos para servir de cenário para as filmagens. Ela foi para o bairro do Xerém, no Rio de Janeiro, onde estava o set de filmagens e partiu em busca de oleiros para encontrar a argila apropriada para produção das peças, além de convidar ferreiros, cesteiros e outros artesãos para compor o grupo afim de produzir, potes, gamelas, moringas, cestas de vários tipos e objetos de ferro. O filme de Cacá Diegues é uma coprodução brasileira e francesa e foi concluído em 1984. O roteiro é baseado nos livros Ganga Zumba, de João Felício dos Santos e Palmares, de Décio de Freitas. Teve um razoável sucesso de bilheteria.

Por causa do trabalho foi conversar com a Diretora das Faculdades Integradas Benett a professora Maria Augusta no sentido de conciliar as atividades do curso com o trabalho na produção das filmagens. Porém, dois professores não concordaram e ela teve que trancar a matrícula na faculdade. Passou sete meses no

Em cima do andaime Selma e   
trablha numa das esculturas
da série dos Homens de Barro.
set das filmagens, porque chovia muito na região e surgiram outros problemas. O filme foi se arrastando e dois meses antes de sua conclusão ela saiu. Decidiu com o dinheiro que ganhou nas filmagens comprar alguns equipamentos e passou a colocar seus produtos em lojas de design e decoração. Foi quando sofreu um acidente ao manipular uma das máquinas, perdendo um dedo. Mas, isto não o desestimulou. Juntamente com a artista plástica Milú Byington abriu em 1984 um ateliê no bairro da Barra da Tijuca, que esta época era pouco habitada e por lá passaram três anos. Chamou o ateliê de Cores da Terra onde fizeram muitos eventos, seminários sobre cerâmica primitiva e elementos naturais. Era um ponto de encontro de artistas e intelectuais. Houve uma divergência com a sócia e resolveram acabar com o ateliê. Diz que produziu esculturas imensas, que não sabe o seu paradeiro, depois da ocupação das terras onde ficava o ateliê. Já durante o governo de Leonel Brizola em 1984 foi convidada pelo Serviço Social do Comércio – SESC para participar do Projeto Emprego e Renda com o objetivo de identificar talentos na favela do Borel e Rio das Pedras, em Jacarepaguá Nesta época foi morar no Rio das Pedras, que fica perto do Borel, e lá conheceu uma senhora nordestina de 70 anos, chamada Maria do Barro que viajava para várias partes do país fazendo oficinas de cerâmicas ensinando os jovens e adultos a trabalhar com o barro. Forneceu a ela uma máquina e outros materiais e confessa que esta convivência foi uma experiência muito rica. Maria de Lourdes Cândido, a Maria do Barro, morreu aos 82 anos de idade em 2021.

Seis Homens de Barro.
Existe uma penitenciária feminina que fica no bairro de Bangu chamada de Talavera Bruce onde permaneceu ensinando por um período Programa de Ressocialização. Depois foi trabalhar no bairro de Valença, no Rio de Janeiro, no resgate das culturas perdidas pesquisando e ensinando manejar o barro. Disposta como sempre alugou em 1987 um sítio localizado em Pedra de Guaratiba, que é um bairro que fica na zona oeste do Rio de Janeiro e lá construiu um forno e passou a produzir. Logo depois foi procurar as lojas chics de design e  apresentava e expunha as suas peças, principalmente nas lojas localizadas em São Conrado, no Rio de Janeiro, e em seguida expandiu sua ação até São Paulo. Isto garantia a sua sobrevivência com dignidade até que conheceu o seu marido, o alemão Franz Rzehak e ficou grávida. Outra mudança drástica. Resolveu voltar em 1989 para sua terra natal Ibirataia e sua grande preocupação era como iria escoar a sua produção, ou seja, como as peças que ia produzir chegariam às lojas de decoração e design  do eixo Rio-São Paulo? Mas, foi em frente e com ela vieram cinco caminhões carregados com suas tralhas, máquinas, fornos, barro e uma infinidade de coisas. Lembra Selma Calheira que o acesso a fazenda era problemático porque chovia muito na região e as estradas de terra ficavam intransitáveis com tanta lama. Foi quando um primo seu lhe ofereceu de empréstimo uma casa no distrito de Japumirim, município de Itagibá. Recomeçou a fazer colares, pequenas esculturas, contratou alguns ajudantes e passou a vender em Salvador e outras cidades brasileiras. Não contava com qualquer logística e tinha que embalar, etiquetar, tirar notas fiscais etc.  

Esculturas em tamanhos diferentes que 
apresentou numa feira recente no
Centro de Convenções em Salvador.
Disse que foi muito difícil este recomeço, principalmente porque estava com uma criança para cuidar. Ia pegar caixas vazias em lojas e supermercados para colocar suas peças para entregar aos clientes. Numa dessas viagens para São Paulo a fim de mostrar suas esculturas de barro em casas de design e decoração conseguiu vender as Lojas Evolução que comprou quase tudo que ela levou e fez outro pedido. Em 1990 decide juntamente com o marido Franz Rzehak criar a empresa Cores da Terra, na Fazenda Barra do Sapucaia, em Ibirataia, município baiano, com a intenção de fomentar a cultura da cerâmica, o desenvolvimento de múltiplos em cerâmica e ferro, dando também início ao processo de formação e capacitação de novos profissionais. Foi participar da Feira do Sebrae, em Alagoas. Era um evento a céu aberto no estacionamento de um shopping Center. Vendeu tudo que levou. Foi novamente para São Paulo participar da Feira Profissional e foi um sucesso. Já tinha doze assistentes, inclusive alguns deles eram menores aprendizes. Daí em diante em 1992 participou da Feira Grifttes-92 que era a principal feira de design e em 1994 foi para Nova York e a princípio não tinha conseguido vender ou receber uma encomenda porque não havia compradores. 

Selma mostra alguns objetos produzidos;

Foi quando um jornalista a descobriu e fez contato com alguém da famosa loja de departamento Bloomingdale’s. Selma foi lá com um irmão mostrar suas peças  e gostaram dos objetos e fizeram um pedido grande a ponto do irmão que o acompanhava perguntar: Você vai ter condições de entregar tudo isto? Voltaram e trabalharam muito e entregaram todo o pedido. Decidiu que deveria continuar participando das feiras e voltou nos anos 94 e 1995. Atualmente na medida do possível sempre retorna porque lá faz contatos com grandes clientes da área do design. Cresceu tanto que chegou a empregar 350 pessoas. Começaram a surgir alguns problemas inclusive de cópias de suas peças aqui e no exterior. Entrou com alguns processos, porém a Justiça é muito lenta e só lhe trouxe prejuízos até agora. Disse que em 2019 na Feira Maison & Objet, em Paris, encontrou cópias de suas peças em três stands , sendo dois  de origem indiana e ucraniana.

Uma visão do stand no Centro de Convenções.
Continua participando de feiras aqui no Brasil como as feiras Home & Gift e a Têxtil & Home, em São Paulo, que “são feiras dedicadas a promover as últimas tendências do mercado, conectar expositores e profissionais do ramo, além de fornecer um ambiente propício para a realização de negócios e parcerias comerciais.” Foi participando de uma feira em Nova York que ela conseguiu contato com um fornecedor de Bruxelas que hoje é um grande comprador e que leva suas obras para lojas de vários países europeus e dos Estados Unidos. Já fez peças para uma empresa brasileira de perfumes com milhares de peças e hoje exporta através a Design-Gardeco para o continente europeu. Resolveu diminuir a sua produção e hoje trabalha com cerca de sessenta assistentes. Conta hoje com a ajuda de seu filho Igor Calheira Rzehak  que é físico e resolveu assumir a direção da empresa. Sua preocupação maior é fazer grandes esculturas de barro de até cinco metros ou mais. São os Homens de Barro e ela disse que já fez oitenta e que pretende fazer mais. É o seu projeto de criar a Cidade dos Homens de Barro, um museu a céu aberto onde as pessoas poderão visitar e que pretende realizar no seu atual espaço uma espécie de centro cultural.

                                                       OS HOMENS DE BARRO

Foto aérea do complexo Cores  da Terra.
Sua cerâmica tem cerca de 2.800 metros quadrados de área construída  com galpões
apropriados para a produção de múltiplos e toda uma estrutura necessária. Hoje ela trabalha com cerca de sessenta pessoas e vem produzindo e enviando suas peças para várias cidades brasileiras e para a Europa e Estados Unidos. Porém, seu sonho maior  ainda não se realizou totalmente. O objeto é a construção da Cidade dos Homens de Barro onde ela pretende colocar mais de uma centena de grandes esculturas que chama de “esculturas figurativas primitivas” com até mais de seis metros de altura e outras menores para que possa ser uma atração turística de contemplação das cerâmicas como obras de arte num ambiente arborizado e preservado que é um pedacinho da Mata
A ceramista e algumas esculturas da série
Homens de Barro.
Atlântica e com toda a estrutura necessária para uma visitação pública. As esculturas na sua visão representam poeticamente o protótipo de um ser de muita força. Foram e são desenhados por ela e retratam a história fictícia de pessoas simples e corajosas que enfrentam muitas dificuldades para manter uma sobrevivência com dignidade. Selma faz questão de afirmar que respeita os materiais e usa pigmentos naturais criados em seu ateliê. Será um espaço aberto para visitação das esculturas gigantes que funcionará como um platô ou mirante das artes, onde o visitante terá uma visão privilegiada do ponto urbanizado e mais alto da cidade. É importante ressaltar que todo este grandioso trabalho é feito artesanalmente e ela investe muito no aprendizado das pessoas da cidade de Ibirataia e de cidades vizinhas. E "as técnicas de modelagem e queima, têm suas origens em resgates culturais, como a cultura indígena e a valorização da natureza nativas o que vem gerando resultados belíssimos”. Informa a Selma Calheira que algumas tintas utilizadas antes do objeto ir à queima são originadas de diferentes tipos de argilas, fruto de pesquisas realizadas pelos designers.”

 

 

 

 

3 comentários:

  1. Uma artista de fôlego e persistência que soube dar a volta por cima e nesse caminho encontrou, alimentou e pôs em prática o seu dom artístico.
    A sua trajetória em si é uma história de superação e sucesso. Uma saga, como tão bem Reynivaldo nomeou este belo texto.
    Selma Calheira uma revelação para muitos, enquanto suas obras de grandes dimensões gritam de braços abertos para o mundo.
    Obrigada, Rey por mais uma primorosa e necessária matéria reveladora de artistas baianos.

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  2. Trabalho e história muito boa! Parabéns, Selma!

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