Floriano Teixeira está morando
em Salvador graças a Jorge Amado. É o ilustrador que em maior número de livros
de Jorge está presente. Fez as ilustrações de Dona Flor e seus Dois Maridos,
Menino Grapiúna, Milagre dos Pássaros e Morte de Quincas Berro D’água, Tocaia
Grande, Farda e do Farda e Fardão, Camisola de Dormir (inclusive uma edição de
luxo para Portugal) . Lembra Floriano que “Jorge é responsável por estar
morando aqui e por uma virada completa na minha vida. Era um pintor de
abstratos e foi ele quem orientou e me incentivou para voltar à figuração. Em
1966, vim como minha família do Ceará para a Bahia.
Aqui não conhecia ninguém, e ele
me deu Dona Flor e Seus Dois Maridos para ilustrar. Isto abriu as portas para
mim, tornei-me conhecido em todo o país e até mesmo fora daqui. Foi uma
abertura de portas. Mas esta influência de Jorge na minha obra veio muito
antes, quando li Capitães de Areia. E, esta convivência com ele é tão
importante, é tão fraterna que a gente não tem mesmo palavras para explicar.”
Não é preciso, basta a gente olhar a perfeita identidade da obra e dos
personagens de Jorge com as ilustrações que Floriano fez , para sentir a
cumplicidade e a parceria.
Já Mário
está num ritmo febril de trabalho. Não pára de esculpir em pedra-sabão suas
cabeças de Ogum, Exu e belas Iemanjá. Mostra-se inquieto e sem paciência para
encontros e entrevistas. Mas, ele tem direito. Já talhou a sua própria
existência e obras para a posteridade, sua figura física e seu jeito de ser
combinam com as criaturas que esculpe com maestria, e ser até estranho que
ainda tivesse tempo para outras ocupações terrenas...
Outro
ilustrador da obra de Jorge é o sergipano Jenner Augusto. De temperamento
quieto, caladão e de uma finura no trato à toda prova.É desconfiado que nem
índio, ou mesmo caboclo. Fica espiando o que a gente está fazendo e ouvindo as
conversas. Não interrompe e nem mesmo dá uma penada. É preciso provocá–lo, do
contrário, entra e sai calado. Só vamos ouvir a sua voz quando se despedir. Mas
Jenner estava também presente ao bate-papo com esta gente difícil de ser
reunida.Ele falou da influência de Jorge na sua vida e obra. Em 1954 morava no
Rio de Janeiro e também embarcava na onda mundial do abstracionismo. Num
encontro que teve com Jorge Amado , após retornar da Europa, acabou com um
conflito que Jenner estava enfrentando. “Eu não estava satisfeito com o que
fazia e o aconselhamento de Jorge foi uma luz.Voltei ao figurativo e esta
amizade tem vencido décadas”.
Jenner
tinha uma vontade acalentada de ilustrar Capitães de Areia, e agora nesta
exposição comemorativa dos 80 anos de Jorge realizou o seu sonho fazendo suas
obras inspiradas nos meninos de rua.
Mas,
a liderança de Jorge conseguindo juntar esta plêiade de bons artistas está
presente não apenas nas páginas de seus livros, mas também nos catálogos das
suas principais exposições. Eles ostentam as apreciações, sempre poéticas e
abalizadas de um homem que também entende e gosta de artes plásticas. Sua casa
é sempre ornamentada de muitas obras de seus ilustradores. Jenner é o
ilustrador de Tenda dos Milagres, onde conseguiu captar a alma dos personagens,
ricos elementos fundamentais que formam o que podemos chamar cultura baiana,
tão representada pelo universo dos personagens criados pelo escritor.
O
artista Calazans Neto sempre foi ligado ao livro, participando, inclusive, de
movimentos literários com outros intelectuais baianos. Existe uma cumplicidade
entre o livro e a gravura, uma ligação forte, bastando lembrar as inúmeras
ilustrações utilizadas em livros de poesias com gravuras. Uma oportunidade
ímpar do artista divulgar o seu trabalho. Um livro de Jorge Amado com 150 mil
exemplares em diante passa pelas mãos de cinco ou dez vezes mais de leitores, o
que implica num número considerável de pessoas que vai ter oportunidade e ver
as gravuras de Calazans neto, além da vantagem da perpetuação do livro. E Jorge
Amado, não sendo poeta, mas romancista, foi talvez um dos primeiros no Brasil a
utilizar a gravura para ilustrar suas obras, e Cala, como é mais conhecido, deu
forma a Tereza Batista, Cansada de Guerra, evidente que seguindo a orientação
do seu criador-mor. Jorge chega a detalhar como imagina o rosto, o corpo,
aliás, por falar em corpo as suas personagens femininas sempre têm formas
cheias, roliças, uma preferência pessoal que ele deixa escapar ao nosso
conhecimento.
Lembra
Calazans neto que a gravura está muito ligada principalmente a exilo, ao
cordel. A primeira ilustração de Calazans para uma obra de Jorge Amado foi,
portanto, com Tereza Batista Cansa de guerra em 1973.
Mostrando
um contentamento quase juvenil, Calazans revela que a sua segunda oportunidade
de ilustrar veio com Tieta do Agreste com uma peculiaridade, porque a
personagem era uma pastora de cabras. “Ora, uma perfeita identificação porque
já pastoreava minhas cabras pelas bandas de Itapuã e as cabras acompanharam meu
trabalho durante um bom período. Caiu a sopa no mel. Isto foi em 1976. Jorge
deu a alma a Tieta, e eu a materializei com as formas de minha arte. Fiz uma
mulher saída do povo em Tereza Batista e com Tieta segui a mesma linha”. Para
esta exposição do Universo de Jorge, o mestre Calá pegou as ilustrações dos
livros e as transportou para a tela fazendo uma brincadeira com seu amigo
fraternal colocando-o montado num belo cavalo com Tereza Batista na garupa. No
seu jeito inconfundível e cativante, o artista deixou escapar uma frase que
resume esta ligação com Jorge e seus ilustradores. “Jorge é o criador. As
criaturas que ele cria são amadas por seus ilustradores”. Uma identificação
perfeita deste homem que é um verdadeiro imã que atrai esta nata do que existe
de mais significativo no segmento das artes plásticas em nossa Bahia.
Carlos
Bastos revela, além da sensibilidade para com os artistas, o lado humano do
escritor: “Tive uma fase onde fiquei quase paralítico e Jorge sempre foi uma
presença constante, me confortando e ajudando no que pôde. Trabalhar para um
livro dele é uma satisfação que não tenho palavras para descrever. Tivemos
cerca de dois anos morando vizinhos e quase sempre ele mandava me chamar para
conversar. Eram horas de muita conversa jogada fora. Depois, hordas de turistas
começaram a perturbá-lo, muitos quase invadindo a sua intimidade, e ele teve
que deixar a Pedra do Sal, para nossa tristeza”.
Ele
ilustrou o livro Baía de Todos os Santos em 1977. Livro que cita este
jornalista numa de suas páginas. Voltando a Carlos Bastos ele disse ainda que
“Jorge foi sempre muito cuidadoso, passa detalhes de seus personagens e às
vezes orienta como o desenho poderia ser feito. Isto não significa
interferência, mas é fruto da convivência e de uma integração maior com seus ilustradores.
São 125 desenhos retratando situações e personagens. Neste livro ele mostra
toda sua capacidade criativa e conhecimento da arte de desenhar. Diria que
Carlos Bastos é um dos mais representativos desenhistas deste país. Poucos
conseguem com ligeiros traços traduzir a personalidade, os detalhes de um
personagem, de um objeto ou paisagem.
Lembro um imponente painel que ornava a Assembleia Legislativa da Bahia, o qual retratava várias personalidades e gente da Bahia. Este painel foi destruído num incêndio, e até hoje Carlos Bastos lamenta o seu desaparecimento. Aliás, este artista já foi vítima de outros acidentes ou mesmo descaso , como aconteceu com os murais que pintou na antiga Boate Anjo Azul, que ficava no Cabeça, próxima ao Largo Dois de Julho, que foi ponto de encontro da intelectualidade baiana em determinado período. Além de ilustrar Baía de Todos os Santos, fez a capa de Tieta do Agreste. “Fiz quatro versões, confessa, e o Alfredo Machado, editor de Jorge, acabou escolhendo a que menos eu gostava.”
Sobre
a sua presença nos livros de Jorge Amado, Carlos Bastos reconhece a importância
e o que representou para ele. Lembra que logo após o lançamento surgiram
convites para várias exposições, inclusive uma em Porto Alegre. Sua surpresa
maior e agradável foi a presença de Jorge Amado no vernissage. Diz Carlos
Bastos que “Jorge é um líder natural. Ele mudou a minha vida, é responsável por
eu morar na Bahia, e graças a ele estou aqui até hoje. Diria que Jorge é um
mecenas dos tempos modernos”.
Carlos
é um artista muito sensível e esses acontecimentos marcaram muito sua vida,
como o incêndio do painel citado acima e a censura exercida sobre sua obra,
especialmente os murais que fez para a capela no Parque da Cidade do Rio de
janeiro, onde pintou rostos de pessoas conhecidas, representando temas
bíblicos, e já faz muitos anos, mas até agora não foi liberado. Também, lembra
com tristeza das telas cortadas estupidamente numa exposição que fez na então
Biblioteca Pública, que funcionava na Praça Tomé de Souza, em Salvador, onde
foi construída a “nova” sede da Prefeitura e o Cemitério de Sucupira.
Também
Carybé, um ano mais velho que o homenageado, disse que Jorge é o responsável
pela mudança do rumo da sua vida. Sempre viajou muito, e quando o conheceu
tinha um emprego de ilustrador e fazia pequenas crônicas de viagem para um
jornal argentino chamado Pregon, que veio na época revolucionar o mercado
jornalístico de sua terra. Lendo o Jubiabá, no Rio de Janeiro, disse: “Ah! Vou
atrás deste cara porque não pode ser verdade o que ele está descrevendo neste
romance”.
Nesse
ínterim fui aos Correios buscar uma encomenda e recebi uma carta de meu irmão
dizendo que o jornal tinha falido. Já estava com dois meses de atraso do meu ordenado.
Ele avisava que não mandasse pedir dinheiro porque ele também estava duro.
Morava numa pensão e fiz amizade com João Borges, sergipano, que me arranjou
uma viagem para Aracaju com o político Josafá Borges, recentemente falecido. De
lá segui para Estância atrás do autor de Jubiabá. Fui encontrar Jorge num
mafuá. Foi uma decepção. Esperava encontrar um mulato forte, de cabelos
encarapinhados destes que tive oportunidade de conhecer no cais e na feira de
São Joaquim. Mas, que nada! Encontrei um sujeito magrinho, com um bigode
ridículo. Ai fiz o primeiro contato e o início de uma grande e fraterna
amizade.Voltei a Buenos Ayres e lá fiz uma exposição dos tipos humanos que desenhei.
Demorei por lá alguns anos e retornei ao Brasil. Fui trabalhar na tribuna da
Imprensa, no Rio de janeiro, com Carlos Lacerda, fazendo ilustrações e charges.
Queriam que fosse diagramador, mas nunca diagramei nada. Até que Rubem Braga
fez uma carta me apresentando a Anísio Teixeira. Ao ler a carta, Anísio ficou
espantado e disse-me que estava construindo a Escola Parque e lá havia espaço
para alguns painéis. Mandou a funcionária que o atendia no gabinete da
Secretaria de educação buscar uma folhinha da Esso. Por uma coincidência feliz,
a folhinha tinha sido ilustrada por mim. Aí fui ficando e a amizade com Jorge aumentando.
Jorge já veio morar na Bahia e fui convidado para ilustrar Quincas Berro
D’água, numa edição de luxo. Depois fiz os cenários e figurinos para o balé
inspirado no livro que foi apresentado no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Para
Carybé existe uma identificação perfeita entre as figuras que povoam o seu
mundo pictórico e mesmo de relação pessoal e os personagens de Jorge. “É esta
gente do povo, rica em sinceridade e alegria. Vivi com esta gente: os bêbados,
os mestres de saveiros e de capoeira, as prostitutas, os malandros, enfim, este
universo que habita as ruas e ladeiras da Bahia. Com o tempo isto vem se
modificando, mas ainda permanece a essência”.
No
livro Sumiço da Santa, Carybé foi convidado novamente para ilustrar e colocou a
cara de Jorge num personagem muito conhecido na Bahia. O escritor não gostou da
brincadeira e “tive que mudar”. Ele prefere não entrar em detalhes, porque o
comportamento sexual do cidadão fugia à normalidade e seria perfeitamente
identificável. Compreensiva, esta sua atitude de reserva...
Neste
instante, Floriano Teixeira entra no bate-papo e diz que também enfrentou uma
situação parecida. “Coloquei a cara de Jorge no turco Fadu Abdala, personagem
de Tocaia Grande e em Milagre dos Pássaros, onde o escritor aparece com as mãos
cheias de frutos. Às vezes, ele não gosta e volta a detalhar as coisas para que
possamos traduzir melhor as suas criaturas. Mas sempre conseguimos driblar, e
ele e outros amigos aparecem nos desenhos que incorporam seus personagens”,
revela Floriano.
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