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segunda-feira, 13 de novembro de 2017

MÁRIO CRAVO JR : O TEMPO NA VIDA DE UM GRANDE ARTISTA

O velho guerreiro faz um gesto que
demonstra estar ativo e olhando
pra frente nas coisas que o cercam
no seu atelier  em Pituaçu
Durante esses vários anos que me dedico  a registrar os principais eventos da artes visuais em nossa cidade,tenho tido a oportunidade de estar diante de importantes artistas daqui e mesmo internacionais . Foram encontros muitas vezes memoráveis para mim , porém, nenhum deles me emocionou tanto como a visita que fiz no dia 9 de novembro, ao velho guerreiro Mário Cravo Jr. Este artista de 95 anos de idade, que mesmo na sua fragilidade física mantém o seu olhar de águia e sua memória com lampejos de  sabedoria, construída pela leitura e muito trabalho a ferro e fogo em suas oficinas ao longo da vasta existência.
 Este criador incansável que há décadas se mistura com as sucatas de vários tipos de metais,  grossos pedaços de madeira de construções que foram incendiadas ou demolidas, de parafusos e tarugos, borrachas, considerados por nós simples viventes como coisas imprestáveis, e resinas que se transformam em obras de arte. Ele soube e sabe como ninguém dar-lhes a grandeza criando esculturas e telas de alta qualidade, e  eternas, que estão ai nas praças, nos museus e nas coleções espalhadas por vários países.

Na conversa que tivemos pude sentir o lado humano e a sua consciência da nossa finitude. "Filho a cada novo dia, é um dia a menos de vida".Respondi brincando "mestre a gente vai morrendo  desde o primeiro dia em que nascemos. " E Mário de repente lamenta os vários conflitos que se estendem pelo sofrido continente africano e depois faz referências às migrações e a maneira como os países poderosos reagem a chegada de novos imigrantes. Para fechar a conversa sobre este assunto que tanto nos aflige nos dias de hoje ele arremata . "Minha política é a minha arte".
Escultura de madeira pintada
e tarugo de ferro datada de 1985.
São frases que marcam para sempre este homem que é o último representante do grupo de artistas modernistas que mudou o rumo das artes em nosso Estado. Juntamente com Carlos Bastos, Carybé, Genaro de Carvalho, Sante Scaldaferri, Jenner Augusto e depois Floriano Teixeira e Calazans Neto, todos ligados ao escritor Jorge Amado construíram aqui uma arte de qualidade rompendo com os maneirismos dos artistas ligados à Escola de Belas Artes que ainda cultuavam a arte dos impressionistas franceses.
Em certo momento o mestre mostrou-se com certo cuidado em responder a algumas perguntas. Disse que sempre esteve ligado a gente da Bahia , mas que sua arte "foge do folclore. Vejo a minha arte como algo que transcende o artista, e traz elementos do sonho do homem que é a permanência da obra de arte através do tempo."
Sobre as muitas perguntas que teve que responder durante sua existência disse que " quando a gente é jovem responde muitas vezes provocando ou mesmo instigando uma postura ou outra de alguém, mas à medida que vamos amadurecendo e ficamos velhos, o tempo é diferenciador." Mas, fez questão de ressaltar que sempre pensou livre e nunca ficou se escondendo atrás de poderosos.
 Portanto, para perguntas que vão criar polêmicas ou embaraços atualmente prefere ficar calado. "Quem faz arte como eu e tem uma mente criativa está ligado ao que pode produzir ".
Eu ao lado de um dos mitos da
 escultura modernista no Brasil
Deixei o mestre à vontade e quase o tempo inteiro ficou segurando em meu braço esquerdo num gesto carinhoso e sempre quando prosseguia o diálogo começava  com a palavra fraterna me chamando de filho.  Nunca tive muita aproximação com o velho Mário. Tinha uma boa amizade com seu filho Máriozinho, o grande fotógrafo reconhecido no mundo inteiro e que desapareceu precocemente. Mas, nesta manhã inesquecível me senti como uma pessoa que tivesse com ele uma convivência constante e fraterna. Por várias vezes me disse: "Filho venha me visitar." E depois corrigiu ,"venha me ver pra a gente conversar . Este negócio de visitar lembra incomodar, e quero que apareça pra a gente ficar aqui conversando. Viu filho?" . 
Cumprimento de cabeças .Um gesto
carinhoso e fraterno de Ivan com
seu pai .
Foi graças ao seu filho Ivan Cravo que marquei este encontro. Ivan trata o seu pai com muito carinho e por algumas vezes eles se cumprimentaram e se acariciaram .O gesto mais repetido era o encontro de suas cabeças. Ivan me disse que tem horas que Mário chega a bater a cabeça na dele  um pouquinho mais forte que até dói. Fala rindo a acariciando a cabeça do pai.
Durante quatro ou cinco dias na semana Mário vai à sua oficina e fica por lá criando pequenas peças, especialmente de madeira, fazendo suas obras e mexendo nas tintas. Embora nesta idade ele não consegue ficar longe de sua oficina, e isto com certeza lhe dar forças para continuar aos 96 anos de idade com certa autonomia .
"É difícil falar de mim. Entende filho? É difícil falar de si sem ser hipócrita.Construí uma obra durante anos e está ai. Agora são as pessoas que vão ver, examinar e até julgar. Certamente uns vão gostar, outros nem tanto. Mas, o que fiz foi o melhor que poderia fazer".
Disse que durante às tardes fica em casa  e sempre está atualmente criando alguma coisa com pastel."Isto me dá prazer e me mantém ativo."
Sobre o gosto pela arte lembrou que sua mãe sempre disponibilizou papel e lápis para ele e os irmãos  desenharem . "Sou  neto de um almirante da Marinha de Guerra brasileira e  ele nos levou para a Europa e lá permanecemos meses . Sempre meu avô nos levava para visitar museus em todas as cidades que a gente ia conhecer. "
Sabemos que Mário Cravo Jr. é filho de um abastado empresário, que trouxe para aqui concessionárias de Williams e da Volks. A Cravo Motor , que na época as pessoas ficavam na fila esperando a hora pra comprar um carro. Ele mexia também com café e outras atividades. Porém, Mário ainda jovem queria fazer arte e foi para os Estados Unidos estudar escultura com o famoso escultor Ivan Mestrovic um amante da arte monumental, e talvez por esta influência Mário Cravo Jr. tenha hoje vários monumentos em praças, avenidas e em prédios públicos e privados. O mais conhecido na Bahia é aquele da Praça Cairu contrastando com o casarão colonial e o majestoso Elevador Lacerda.

                                                              CABEÇA DE TEMPO

Escultura de madeira pintada
datada de 1989.
Quando Ivan me presenteou com um exemplar do belo catálogo da exposição Cabeça de Tempo organizada pelo galerista Paulo Darzé ele indagou se queria que fizesse uma dedicatória e quando respondi positivamente passou a elogiar a mostra. "Montar uma exposição tem que ter o dom artístico. Afinal é um trabalho de arte. A exposição está muito bem montada e bonita". Realmente as 70 peças estão expostas numa maneira muito profissional.
São belas esculturas muitas delas feitas em toros de madeira que sobraram do incêndio do Mercado Modelo na década de setenta que Paulo Darzé conseguiu reuni-las e montar esta mostra. São peças que foram reunidas pacientemente pelo galerista conseguindo uma bela unidade. Os cortes que lembram àqueles feitos com machado e as cores fortes remetem à icnografia da esculturas africanas, porém se diferenciam na medida em que contextualizamos a ambientação da nossa Bahia. Mário  é um  artista moderno e foi ele um dos pioneiros deste movimento aqui em Salvador. Sua inquietude criadora atravessou décadas e sempre foi uma figura altiva.
Mário numa pose altiva
e num gesto blasé,
segundo definiu a foto
de Máriozinho.
Ao mostrar a foto tirada por seu filho Mariozinho que ilustra a capa do catálogo e o convite da mostra ele riu e disse: "Esta foto dá uma ideia de arrogância e depois corrigiu. Arrogância não, altivez, mas olhe que estou com o pé fora da sandália numa pose blasé. " E riu em seguida. Como podemos ver o mestre continua atento à tudo aos 96 anos de idade.
Não quero aqui escrever palavras emboladas e linguagem incompreensível para mostrar uma falsa erudição que não tenho e não curto. Quando escrevo sobre um artista ou uma exposição procuro me colocar com o olhar de uma pessoa sensível que gosta de arte, que observa a técnica, que se encanta com as cores e com a elaboração da obra de arte. O que procuro fazer é um registro jornalístico dos eventos, com uma linguagem objetiva e nesta reportagem trago o lado humano deste grande artista que já respondeu a todas as perguntas possíveis, ganhou muitos prêmios, está presente nas praças, museus e coleções com suas obras, e também já foi enaltecido pelos maiores críticos daqui e de fora.
Lembrei de uma cena que me foi contada por uma pessoa muito próxima. Na década de 70 Mário Cravo Jr. foi convidado para dar uma palestra durante uma comemoração no Colégio da Bahia, que depois virou Colégio Central, localizado na Avenida Joana Angélica. Na hora combinada lá estavam a diretoria e os professores esperando o convidado, todos bem vestidos e empertigados. Daqui a pouco eis que surge no portão o Mário à vontade com suas sandálias .Parou diante de um jovem que vendia picolés numa caixa de isopor. Mário  tirou o dinheiro do bolso escolheu um picolé e veio saboreando ao encontro daqueles que os esperavam. Entrou no colégio e foi fazer sua palestra sendo ovacionado pelos professores e estudantes. Este é o Mário que escolhi para falar .Quanto à sua vasta e variada obra está ai eternizada para que os apreciadores e os críticos se deliciem e escrevam laudas e laudas sobre a sua grandiosidade e especificidade.




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