Texto Reynivaldo Brito
Carlos Bastos não morreu, ele virou encantado
Carlos Bastos é o pintor da miscigenação. Ele sempre trabalhou com grande influência no barroco, do surrealismo e do clássico misturando tudo com categoria.
Desenhista de mão cheia Carlos, durante toda a sua trajetória pictórica, agradou a todos àqueles que têm sensibilidade para as artes plásticas. Seus desenhos são tão primorosos que nos transportam ao passado, onde os grandes nomes da pintura mundial esbanjam talento com seus desenhos. Ele se aperfeiçoou nos Estados Unidos e em Paris.
Aqui sempre esteve à frente do tempo, ou seja, soube experimentar com pioneirismo várias técnicas e maneiras de se expressar. Isto demonstra que o pintor sempre procurou pintar com total liberdade. Pintava o que gostava e o que brotava de sua criatividade invulgar. Esta era a visão deste baiano que tinha seus olhos voltados para a beleza.
Carlos era um apaixonado pelo achava belo e, com seu jeito de criança, expressava em palavras, gestos ou através de seus traços a leveza de seus sentimentos.
Lembro de Carlos na boite Anjo azul. Mesmo quando se acidentou, fraturando a perna, lá estava ele envolvido na penumbra das fracas luzes que deixavam em evidência seu ar celestial, quase de um santo guerreiro a defender seus soldados numa cruzada.Em destaque o seu cavanhaque bem penteado. Tudo em Carlos tinha que ter harmonia.Isto está patenteado em todas as suas obras, as quais apresentam uma marca registrada.Embora sua arte seja essencialmente figurativa, ele preferia ambientes alegres, de contemplações ou místicos. Nada de denúncia social ou outras visões conflitantes.
Escreveu Jorge Amado que “há em torno dele (Carlos Bastos) certa atmosfera que faz recordar a Renascença”. Na realidade acho que existe uma identidade entre a obra deste artista e a própria cidade do Salvador. Não consigo visualizar a arte de Carlos fora deste ambiente baiano de miscigenação de cores, sons e gente. Tudo isto, dentro de um clima quase celestial onde ele transitava com se fosse um verdadeiro anjo.
Pintor de vários murais, inclusive o mais famoso deles o da Assembléia Legislativa, e que foi totalmente destruído por um grande incêndio que dizimou o prédio do Legislativo baiano.
Neste mural ele fez uma Procissão de Bom Jesus dos Navegantes que a cada primeiro de janeiro corta as águas azuis da Baia de Todos os Santos. Mas o Governo da Bahia o chamou novamente e Carlos pode pintar o outro mural semelhante ao primeiro, onde colocou novos personagens da vida baiana, num total de 134. Ali ele pode mostrar um espaço bem maior todo o seu talento no desenho e na pintura.
GERAÇÃO
Ele integrou uma geração de grandes pintores, entre eles Floriano Teixeira (maranhense), Jenner Augusto (sergipano), Carybé (argentino), Genaro de Carvalho, Mirabeau Sampaio, Mário Cravo, João Alves (ex-engraxate), José de Dome (sergipano), dentre outros, os quais gravitavam em torno da figura paterna de Jorge Amado. Eles criaram um clima espetacular de produção de uma arte baiana com abrangência e linguagem universais. A maioria já faleceu, mas este grupo deixou um legado muito importante para a arte contemporânea do nosso país.
Cada um deles com sua trajetória. Floriano Teixeira com seu traço leve pintou a nossa Bahia dos casarões com cenas picantes no interior dos amplos quartos, e belas crianças.
Jenner Augusto soube captar a religiosidade de nosso povo através de pinturas de procissões e coroinhas, a nossa paisagem como as que fez sob inspiração do Dique do Tororó, hoje completamente urbanizado.
Genaro de Carvalho foi tapeceiro por excelência, procurando detalhes nas nossas flora e fauna: Mirabeau Sampaio nos encantou com suas madonas pintadas em folhas de ouro; Mário Cravo com ferro, resina e fogo nos trouxe a explosão da modernidade; João Alves com a sua simplicidade de um trabalhador de rua nos brindou com nossas igrejas e casarios; Willys com uma visão ingênua e rica das ruas e da gente de nossa cidade; o alemão Hansen Bahia, com o qual eu tinha uma boa relação de amizade e admiração, nos legou uma gravura de alta qualidade incrustada da tragédia da guerra que vivenciou em seu país; José de Dome era quase um frade com a sua leveza de ser.Lembro que encontrei o por acaso num hotel em Curitiba, onde fazia uma exposição.Conversamos um pouco e ao voltar da rua lá estava um pequeno e primoroso desenho que ele acabara de fazer com uma dedicatória.Este era o Zé de Dome, o terno filho de Estância. Carybé era o mais latino pintou as feiras, as festas, as putas e malandros dos cabarés. Pintou as mães e filhas de santo, o candomblé e toda a Bahia. Finalmente, Carlos Bastos o pintor dos anjos barrocos, das procissões, e por excelência da miscigenação que tanto nos encanta.Uma pintura cheia de poesia, cheia de ternura, angelical. É assim que enxergo a obra de Carlos Bastos que se inquietava com as grosserias, com as incertezas da vida. Mas, que sabia como um sábio calar na hora certa e observar os detalhes. Vejam como ele pintou os torços, os hábitos das freiras com seus imensos chapéus.
MURAL VIRA ASSUNTO POLÍTICO
O caso do incêndio que destruiu o painel deixou Carlos Bastos chateado e chegou até pensar em não repeti-lo, porque o primeiro levou dois anos para ser concluído, privando-o de outros afazeres, e também na época, confessou que não gozava de boa saúde para estar, em cima de andaimes pintando um mural de 16 metros de comprimento por 10 de altura.
O artista plástico chegou até especular naquela ocasião, estranhando os inúmeros incêndios que vinham ocorrendo em Salvador. Ele disse “não duvido que se venha recorrendo a este expediente para destruir alguma coisa. Inclusive, o que aconteceu na Assembléia Legislativa visou apenas o mural. Quando aparece alguém fazendo oposição à sua reconstrução, como agora, é estranho, pois parece que está se condenando”. Na realidade nada disto correu, apenas a oposição exercia o seu papel de criticar, tendo em vista que o convite partira do então governador Antonio Carlos Magalhães e, também pela escolha de alguns personagens. Mas tudo foi devidamente contornado e, hoje, o vistoso prédio da Assembléia Legislativa conta com o novo mural de autoria do artista, que é umas das obras plásticas mais apreciadas na Bahia.
SESSENTA ANOS
Quando Carlos Bastos fez sessenta anos, em 1985, escrevi : "os cabelos estão brancos e o riso nos lábios. O peso dos 60 anos não lhe preocupa, porque tem uma mente jovial somada a uma docilidade à toda prova.
As mãos estão mais experientes, mais firmes, e a sensibilidade mais aguçada.É este um retrato do artista Carlos Bastos que festeja esta marca importante da sua experiência com uma exposição de seus últimos trabalhos na Galeria "O Cavalete"da qquerida Jacy Brito..
Carlos continua, jovem e irreverente, sempre atual e em contato com os jovens. É um dos poucos artistas baianos no seu patamar que houve os jovens e os artistas, que é capaz de conversar sobre o trabalho e dar algumas dicas. Disposição também não lhe falta e poucos dias antes da exposição estava trabalhando como um desesperado para concluir alguns quadros dos que estão agora expostos.
Escrevi também que a “figura humana ganha um clima especial na obra de Carlos Bastos. Ele brinca com as freiras, com as negras e com jovens, colocando-os num clima quase surreal onde as formas e as cores trazem a sua marca inconfundível. Tão presente que tem sido imitado por muitos jovens artistas que ainda não acertaram o passo ou não conseguiram uma personalidade pictórica e ficam presos às suas influências.
Nesta sua exposição, fomos mais uma vez, brindados com o seu talento, comprovando, inclusive, que nenhuma temática é por demais gasta. O que importa é a forma de abordá-la. Vejamos as flores que o artista está expondo como são belas, agradáveis e, principalmente, como diferem do tradicional. A simplicidade das formas e a composição de suas flores é um dos momentos fortes da sua arte. Estou, portanto, gratificado com esta exposição de Carlos Bastos que é uma prova da sua vitalidade, e que, os 60 anos sejam bem vividos, como ele sempre viveu, e que esses 22 quadros se multipliquem em centenas de outros.
DEPOIMENTO DE CARLOS BASTOS
Transcrevemos abaixo um depoimento de Carlos Bastos sobre o Anjo Azul, fundado em 1949, que é primoroso e mostra a sua dimensão para a época. Ele foi escrito para o Jornal da Bahia e saiu publicado em 13 de julho de 1977. Vejamos:
“Em 1949, regressava de uma estada de dois anos em New York, quando fui apresentado a José Pedreira, criatura de inteligência privilegiada e muito avançado para a mentalidade da época, em que a Bahia parecia estagnada, dormindo seu sono barroco. Parecia que nada aqui mudaria. Mas era uma época de milagre, algo já começava se sentir no ar. As mudanças de costumes teriam que se processar, para acompanhar o após-guerra no mundo inteiro.
Pedreira me contou que precisava de dinheiro e que havia na rua do Cabeça, uma porta de aluguel muito barato e que ele iria abrir um boteco, para vender cigarros e bebidas, coisa sem pretensão. Fui olhar o lugar com ele e pedi que deixasse eu pintar as paredes úmidas e não preparadas do local. Era uma brincadeira apenas...
Enquanto eu trabalhava dia e noite, foi aparecendo amigos, intelectuais da época, artistas, jornalistas, uma série de gente carente de um lugar para discutir, dialogar, encontrar e tomar drink. “ Não havia nada deste gênero”, há não ser Boteco de Esquina, onde se bebia pinga em pé”.
Vivendo no estrangeiro, para mim era comum este tipo de lugares onde pessoas que querem um pouco de sossego e paz, se refugiam e se agrupam conforme seus anseios e idéias, em ambientes mais cômodos para fugir a rotina dos apartamentos.
O nome Anjo Azul foi idéia de Pedreira.Ele sabia que havia um Anjo Azul em cada cidade grande do mundo, inspirado no famoso filme de Marlene Dietrich. Achamos que a Bahia merecia um. Parece que o nome trazia o sortilégio, pois pegou e deu certo.
Antes de terminar a decoração e as pinturas murais, as pessoas pediam para ficar e beber, mesmo com as portas fechadas. Isto deu motivos e vários comentários maliciosos na pequena e antiga Rua do Cabeça, Bordel? Lugar suspeito? Misterioso?... Mistura de todas as classes, quando o Anjo Azul abriu, já era famoso. Para uns, o lugar ideal para um bate papo. Para outros, lugar de perdição. Durante anos foi o bar tranqüilo, com fregueses certos e famosos. Motta e Silva, Vasconcelos Maia, José Valladares (que escreveu vários artigos sobre o Anjo Azul e seus hábitos e como influenciou nos costumes da Cidade: Genaro de Carvalho, Hélio Simões, Carlos Eduardo da Rocha, Odorico Tavares, Wilson Rocha, Mário Cravo, Moacyr Maia, Jair Gramacho, Thomas Seixas, Darwin Brandão e todas as pessoas famosas da época, que aqui vinham e tinham um lugar para se encontrar.
Baiana vendendo acarajé na porta, dentro, móveis antigos, todos em jacarandá, retábulos de igreja, nichos, anjos, espelhos barrocos e música, coisa que nem hoje temos. Tudo isso pertubava o baiano menos informado e escandalizava.... As moças mudavam de passeio, para o outro lado da rua, para não passar pela porta maldita.
Aos rapazes jovens eram ameaçados pelas famílias, que nunca entraram em um bar. Pedreira sofreu muitas ameaças. Brigas, bota prá fora e eu ajudava. Até que ganhei uma bolsa de estudos para a França, por causa dos murais, dada por Anísio Teixeira. E fui embora. Um ano depois chega José Pedreira em Paris. Vendi o Anjo Azul! Não agüentava mais. Vendi por 30 contos. Vendeu a um alfaiate e antiquário, italiano Agostinelli, que transformou o local em um verdadeiro antiquário.Vendia santos aos turistas e isto causou uma grande revolta”.
DADOS BIOGRÁFICOS DE CARLOS BASTOS
O pintor Carlos Frederico Bastos nasceu no dia 12 de outubro de 1925, na rua Direita, Mariquita, no bairro do Rio Vermelho, onde morou até os 15 anos.Aos 9 anos, desenhou seus primeiros traços. Aos 15 anos de idade mudou de casa, aos 18, de país, tendo viajado primeiro para a França, depois para os Estados Unidos. Estudou com Mendonça Filho na Escola de Belas Artes da Ufba.Em 1961 monta seu atelier no Rio de Janeiro. Realiza várias exposições aqui e fora do país.Em 1959 monta seu atelier no Solar da Jaqueira, em Salvador, na rua joaquim maia. Em 1962 foi internado por engano no Hospital das Clínicas , no pavilhão de Doenças Tropicais. Em 1963 foi atropelado por um táxi na Avenida Atlântica, no Rio de Janeiro, passando longo período numa cadeira de rodas. Desta fase surgiram vários desenhos e pinturas, refletindo o seu estado de saúde. Em 1964 foi preso acusado de negociar armas ilegais. Na realidade ele tinha adquirido algumas armas antigas num antiquário para sua coleção.Em 1966 foi internado por sofrer paralisia total no Rio de Janeiro.
Em 1970 retorna ao Rio e monta o seu atelier. Retornou à Bahia em 1973 e constrói seu atelier na Pedra do Sol, em Itapuã, onde morou até a sua morte ocorrida após 57 anos de vida artística.
Estava com 78 anos de idade e com 30 dias de internamento na UTI do Hospital São Rafael Intensiva, mas acabou sendo vítima de falência múltipla dos órgãos, morrendo no dia 12 de março de 2004, às 14h. O motivo da internação foi o rompimento de uma hérnia no intestino grosso.
O corpo do artista plástico foi velado em sua própria casa, em Itapuã, na presença de amigos e familiares. No dia 13 de março de 2004, após a celebração da missa de corpo presente na residência do pintor, às 11h30, o corpo de Carlos Bastos foi cremado, no Cemitério Jardim da Saudade, em Brotas, como era seu desejo. Suas cinzas foram depositadas aos pés de um altar, situado na igreja da Praia do Forte. Mas isso somente depois que Altamir Galimbert, seu companheiro há 35 anos, terminou uma escultura idealizada por ele e Carlos Bastos, que foi confeccionada no local.
"Espero que ele se junte a Jorge Amado e pinte o céu ainda mais bonito do que pintou aqui embaixo", disse Galimberti.
A opção de velar o corpo do artista plástico em sua própria casa partiu dele mesmo, que viveu 30 anos no local.Lá, durante este período, recebeu a visita de personalidades como Jorge Amado – de quem foi ilustrador – Carybé, Calazans Neto e Vinicius de Morais.
Carlos Bastos deixou seus traços imortalizados, espalhados por todo o mundo.Sempre em busca da arte com paixão e expressão, foi pintor, muralista, ilustrador, desenhista, cenógrafo e editor. Estudou na Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bhia ( UFBA) onde foi diuscípulo de Mendonça Filho, Raimundo Aguiar e Valença.
Entre 1944 e 1946, estudou na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, onde foi aluno de Santa Rosa, Iberê Camargo e Carlos Oswald. Ainda na década de 40, cursou a Sociedade Brasileira de Belas Artes e a Fundação Getúlio Vargas, onde participou de aulas particulares com Portinari.
Anos mais tarde, fez aperfeiçoamento no Arts Studants League em Nova Iorque, Estados Unidos, onde teve como mestres Harry Stroingberg e Nicolay Abracheff. O artista continuou seus estudos de desenhos na Academie Grande Chaumière, em Paris.
Retornando da França montou , oito anos mais tarde, seu atelier no Solar da Jaqueira, em Salvador. Em 1965 editou o livro com desenhos de igrejas, santos e anjos da Bahia, com prefácio de Jorge Amado. Em 1973 recebeu da Prefeitura de Salvador o título de Benfeitor do Museu da Cidade. Durante as três últimas décadas do século passado fez ilustrações para vários livros, principalmente de autores baianos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário