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O artista Zivé Gíudice |
Carta Inventário :
( MAM, o mais importante equipamento de cultura do estado da Bahia)
O tempo é implacável, e tão implacável quanto o tempo é a experiência
pessoal, íntima, que ele torna possível. Como ela, não há como nos
escondermos em subterfúgios e, por causa dela, somos colocados frente a
frente com o que somos. Talvez até aqui não consigam intuir o propósito desse
texto, mas, se eu não fracassar na exposição dos motivos que me fazem
escrevê-lo, tudo ficará em seu devido lugar.
Da primeira vez que fui exonerado do cargo de Diretor do MAM, Museu de
Arte Moderna – BA, elaborei um documento em que relatava, com tom enérgico,
as causas de meu desligamento. O texto, mirando o nervo, acertou a veia da
não docilidade, da insubordinação de quem se pensa autônomo, de quem se
expressa por um modo de pensar autônomo. Hoje, depois de, em junho de 2017,
ter retornado à anterior função de diretor do MAM, recebo com surpresa a
notícia de minha exoneração.
Desta vez, a acidez do antigo texto já mencionado dará lugar à
temperança da sabedoria que cabe a alguém que não tem como se furtar ao peso
incontornável de quase 67 anos de vida. Poderão pensar alguns que isso é, na
verdade, o esconderijo de uma covardia ou modéstia, lugar dos hipócritas. No
meu caso, é antes o contrário. Covardes não agem, covardes silenciam perante
injustiças. Minha natureza não abre brechas a esse tipo de comportamento.
Pensando nisso, é para a sociedade civil, a quem aqui presto contas, que
passarei a expor uma espécie de inventário das mais importantes ações
realizadas por mim em nome do MAM. Caberá a ela ajuizar pela justiça ou
injustiça desse desligamento.
O primeiro gesto que fiz, tão logo reconduzido à Diretoria do MAM, foi
buscar no viço próprio da juventude os novos nomes das artes visuais baianas.
Dessa pesquisa, nasceu o projeto da exposição Pertencentes (setembro a outubro
de 2017), cuja realização alavancou a produção de dezenove artistas de
indiscutível qualidade.
Esse foi o estopim para a condução de uma gestão que primasse por
visibilizar o olhar contemporâneo da arte, sem, no entanto, esquecer os
artistas de outrora que pavimentaram o caminho por onde os mais novos passam
agora. Com vistas a isso, a ideia era ativar o novo e presentear a comunidade
com as amostras daquilo que a arte brasileira, constitutiva do gigantesco
acervo permanente do MAM, tinha brilhantemente produzido.
Não entendia o porquê de tantas obras repousarem na poeira dos
arquivos, longe dos olhares de um povo que MERECE e, mais do que isso, de um
povo que tem o direito de conhecer sua história também na perspectiva da
arte, a mais revolucionária demonstração de força e empoderamento que a
experiência humana pode engendrar! Pensei e penso nos museus, mais
especificamente no MAM, como espaço de pertencimento sociocultural, para o
qual é preciso, em um primeiro momento, haver o chamamento da sociedade, um
convite expresso dirigido a todas e todas, sem quaisquer distinções, para que
procedessem a apropriação de equipamentos de cultura; o MAM devém, assim, um
espaço de ressignificação social. Daí, consolidaram-se as seguintes
exposições:
• Da Razão ao Informalismo (agosto de 2017, com obras de oito
artistas);
·
Mostra Gráficas 3 (agosto de 2017, com obras de
professores e alunos da Escola de Belas Artes da UFBA);
·
Um Recorte da Figuração do Acervo do MAM
(dezembro de 2017, com participação de 11 artistas);
• Escultores contemporâneos brasileiros (janeiro de 2018, com
participação de 17 artistas);
·
Acervo dos Salões do MAM (fevereiro de 2018, com
obras de 19 artistas);
·
ALFREDO VOLPI (março a julho de 2018);
·
Arte Eletrônica Indígena (agosto a setembro de
2018, com obras cocriadas por indígenas brasileiros e artista da Bolívia,
Reino Unido e Brasil);
·
Acervo do MAM (outubro a novembro de 2018, com
obras de 11 artistas brasileiros, em homenagem a Mário Cravo Júnior);
·
MESTRE DIDI, Ancestralidade e resistência
(outubro a novembro de 2018);
·
Vértice (dezembro de 2018 a abril de 2019, com
obras de 20 artistas); e
·
AURELINO DOS SANTOS, A letra que faz o mundo
(dezembro de 2018 a abril de 2019).
Para algumas dessas exposições, contei com parcerias decisivas. Entre
as colaboradoras mais frequentes, destacam-se a Galeria Paulo Darzé e a
Roberto Alban Galeria, ambas sediadas em Salvador/BA, e a Almeida & Dale,
de São Paulo. A elas, meu agradecimento especial. Da mesma forma, serei
eternamente grato às pessoas de Bel Borba, Caetano Dias, Almandrade e Sérgio
Rabinovitz, membros do Conselho Curatorial, pela intransigente defesa de que
o MAM, como equipamento de cultura, deve mesmo é alinhar-se com as artes
visuais, o mais importante objeto de compromisso do museu.
E não é só! O MAM, na esteira do que se estabeleceu, no decorrer deste
século, como conceito de museus de arte, abriu-se a outros domínios,
ultrapassou a fronteira da arte visual para afinar-se com outras expressões
que se estreitassem ao propósito do museu, a saber: PRODUZIR ARTE. Os
exemplos disso são:
·
20 edições do Projeto MAM abraça as crianças, com
público total estimado em 20.000 pessoas. Esse projeto é, no âmbito pessoal,
especialmente valoroso, pois trouxe ao Museu pessoas que jamais se sentiram
convidadas a frequentar suas instalações, jamais se sentiram contempladas em
usar um equipamento público voltado à uma arte historicamente usufruída por
especialistas . Nessas 20 edições, muitas crianças e jovens descobriam o
quanto a arte pode ser combativa, porta-voz das demandas populares
silenciadas covardemente por aqueles que só querem negar o novo, negar a
mudança dos tempos. ( Esse projeto acontecia aos domingos. Os funcionários e
alguns voluntários, chegavam às 8h da manhã. Dedicavam com sacrifícios, dois
domingos a cada mês para fazerem acontecer as oficinas com as crianças. O MAM
oferecia almoço a todos. Tínhamos que providenciar o retorno de todos às suas
casas. Todas essas despesas feitas com as possíveis contrapartidas, ou, nós
artistas, nos cotizávamos para garantir o evento)
·
Participação efetiva na revisão do projeto de
reforma das instalações do MAM, com o objetivo de evitar a descaracterização
dos espaços e, com isso, mostrar-se rigorosamente obediente ao Protocolo de
funcionamento da instituição. Quanto a esse ponto, cabe uma importante
indagação: queremos um Museu que, pela sua localização privilegiada e pelo
acervo arquitetônico que lhe constitui, funcione apenas como local
“pitoresco” de um restaurante, ou o restaurante ser um elemento indexado a um
projeto de cultura? Em outras palavras, queremos um Museu em que ocorrem
oficinas, mostras artísticas, espetáculos culturais no qual há, também, um
restaurante, como lugar de convivência, ou queremos um Restaurante que se
utiliza, luxuosamente, de um Museu? Em uma pergunta: Qual deve ser o atrativo
do MAM? Não creio que haja outro atrativo para o MAM além dele mesmo. Como
tenho dito há anos, O ATRATIVO DO MAM É O MAM!!!!
Ainda quanto ao processo de reforma, o vasto período pelo qual se
arrasta constituiu, devo dizer, outro elemento constritor para a gestão.
Exemplo disso é a limitação espacial do Casarão em virtude da interdição de
seu pavimento superior. Ainda sobre a questão da reestruturação do MAM, assim
como, indiretamente, de todos os museus, havia recebido do Governador Rui
Costa a incumbência de coordenar,junto com a Secretária, o processo de
retirada desses equipamentos dos domínios do IPAC, por incompatibilidades
conceituais. Fizemos esse pleito em um documento entregue ao governador,
assinado por dezenas de artistas, intelectuais, galeristas e curadores, na
ocasião de um encontro do governador com artistas representantes de diversas
linguagens. Não obstante o governador ter determinado a mudança, a Secretaria
da cultura nada fez e, se fez, nós - museus e artistas – não tomamos
conhecimento.
·
Reativação das oficinas de litogravura,
xilogravura e gravura em metal, cujo formato reduzido (já que não se
expandiram para outras técnicas) deu-se pela limitação espacial provocada
pela reforma do galpão destinado a essa atividade.
·
Criação do Projeto Acústicos do MAM, em que se
apresentaram, em quatro edições, importantes artistas da música brasileira e
local. Esse projeto foi executado pela E33 Entretenimento, a quem agradeço na
pessoa de seu diretor Eduardo Mattos. Além de fomentar a cultura musical,
esse projeto funcionou como forma de captação de recursos econômicos para
viabilizar importantes ações. De duas das quatro edições, as contrapartidas (
todas arbitradas pela gestão do Museu, com a participação do Conselho de
Curadoria, e posteriormente admitidas pelo órgão dessa competência)
permitiram a aquisição dos seguintes materiais e equipamentos permanentes e
de manutenção:
1. criação da marca
“Acústicos no MAM”;
2. 02 (dois)
aparelhos de computador (Notebook);
3. 01 (uma)
furadeira;
4. 01 (uma)
parafusadeira;
5. 10(dez) folhas de
compensados naval de 15mm
6. 01 (um) rolo para
litrogravura;
7. 01 (um) kit de 60
(sessenta) brocas;
8. 03 (três) latas de
18 (dezoito) litros de tinta branca (destinado ao MAB para exposição
Berlim-Bahia);
9. 01 (uma) lata de
massa corrida de 18 (dezoito) litros (destinado ao MAB para exposição
Berlim-Bahia);
10. 02 (dois) rolos
de lã para pintura (destinado ao MAB para exposição Berlim-Bahia) ;
11. 10 (dez) folhas
de lixa (destinado ao MAB para exposição Berlim-Bahia);
12. 03 (três) rolos
de fita adesiva (destinado ao MAB para exposição Berlim-Bahia);
13. 40 (quarenta)
refletores com lâmpada PA 38 para as salas de exposição;
14. 40 (quarenta) lâmpadas
LED;
15. 20 (vinte)
lâmpadas (PA 38) especiais para exposições;
16. 400
(quatrocentos) parafusos para montagem das exposições;
17. produção de
conteúdo para as exposições de Aurelino dos Santos, A letra que faz o mundo,
e Vértice, sob a forma de: plotagem, banners, logomarca de identificação das
amostras e convites eletrônicos;
18. material e
insumos destinados à execução da 17ª edição do MAM abraça as crianças.
A julgar pelo tempo em que vivemos, a julgar pelo lugar conferido à
cultura pelos órgãos e autoridades governamentais, pouco importando aqui qual
seja sua inclinação ideológica, os leitores dessa carta-inventário, assim
espero(!), serão conduzidos a pensar ser essa, muitas vezes, a única
estratégia de sobrevivência dos atuais equipamentos de cultura. Vale ressaltar
que as aquisições mencionadas acima referem-se às duas primeiras edições do
Projeto Acústicos. As duas últimas contrapartidas do Acústicos ainda estão
por serem demandadas. Essas contrapartidas se constituíram na única fonte de
recursos do MAM.
Exposto isso, a esses mesmos leitores talvez seja pertinente
perguntar: Fez pouco, em 18 meses, quem realizou essas ações sem dispor de
qualquer recurso institucional? Contribuiu pouco com a cultura aquele que
empunhou essas bandeiras? É claro e natural que ocorreram críticas à gestão,
principalmente pela condução rigorosa, que não transigiu, sob nenhuma
alegação, seja ela de cunho pessoal ou institucional, a proteção do Museu e,
consequentemente, da função social com a qual está relacionado. Infelizmente,
não é possível agradar a todos, por mais bem intencionados que sejam; não é
possível atender a todas as demandas, mesmo que legítimas. Mesmo assim, tais
perguntas objetivas precisam ser feitas e pude fazê-las a tempo de esse
acontecimento não ser, ardilosamente por alguns, colocado no limbo do
esquecimento, nesse lugar de não memória. Aqui é preciso não esquecer o
momento inoportuno do desligamento: a notícia de minha exoneração veio no dia
da abertura das festas carnavalescas. Por que será? É delírio pensar que se
tratou de uma estratégia de inviabilizar qualquer discussão sobre causas que
motivaram a exoneração, à revelia da comunidade geral e, mais estritamente,
da comunidade artística?
Todos que compartilharam ou estiveram próximos da minha gestão compreendiam
e apoiavam a minha resistência e a minha recusa em dar voz àqueles que, a
despeito dos seus cargos, nada tinham de substancioso para colaborar com o
projeto de ressignificação do MAM. Não se tratava de iconoclastia ou
irreverência, mas, antes, de criar proteção contra pessoas que nada conhecem
do objeto arte.
Chegando perto do fim dessa carta, misto de manifesto e inventário, é
sobre o futuro, a memória do futuro, que quero tratar agora. Nesses últimos
meses, foram muitas as discussões acerca do ano em que o MAM completa 60 anos
de existência com a consequente concepção do calendário de comemorações.
Resta-nos saber se as ações programadas em minha gestão serão levadas a cabo.
Entre elas, ressalto:
·
exposição de Adriana Varejão (com início previsto
para abril);
·
exposição de Ana Elisa Egreja (prevista para
junho);
·
exposição do artista Vik Muniz (prevista para
julho);
·
exposição de Mariana Palma (ainda com data
indefinida );
·
exposição Geração 70 com respectivo lançamento de
livro (previstos para setembro);
·
exposição de Leda Catunda (prevista para
dezembro);
·
além de outras em fase de ajuste no calendário.
Convicto de que cumpri, junto à sociedade, com aquilo que deve ser
obrigação de toda pessoa à frente da execução de serviços públicos, resta-me
agora agradecer o decisivo incentivo de familiares e amigos durante essa
jornada. Aos colegas de trabalho, meu muito obrigado pela preciosa
contribuição com o MAM e por NUNCA se furtarem a servir aos projetos
executados pelo e no museu. Que todos saudemos a arte, centro indiscutível
disso que chamamos cultura!!
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