domingo, 27 de outubro de 2024

MORRE NIDE A ARTISTA QUE PINTOU A SENSUALIDADE DA NEGRA BAIANA

Foto 1. Nide jovem. Foto 2. D. Gina,
Romano Gallefi, Nide e Humberto
Lyrio.Foto 3. Anna Georgina, Nide 
e  d. Yolanda.

A artista plástica Eronildes da Silva Bacelar, que assinava Nide, faleceu ontem aos noventa anos de idade deixando um legado de pinturas de mulheres negras mostrando a sua sensualidade com os seios à mostra, em grupos vestidas de filhas de santo e também nas festas populares. Muitas de suas obras trazem também a delicadeza das rendas brancas contrastando com a cor da pele negra de suas baianas. Consta da sua biografia que nasceu em 28 de junho de 1927 na cidade de Aiquara no interior da Bahia. Filha de Purcina Rita da Silva e de Pompílio Rodrigues da Silva, criador de gado e comerciante na mesma cidade. Casou-se, em 1947, com o médico   S. Marques Bacellar (1907-1980), com o qual teve oito filhos.

Em 1963 a  Nide fez um curso livre de pintura na Escola de Belas Artes, da Universidade Federal da Bahia, com o professor Emídio Magalhães (1907-1990). Em 1971, aperfeiçoou seus estudos de arte no Rio de Janeiro. A partir de então, tornou-se autodidata, desenvolveu técnicas próprias de pintura e seu  estilo. Pesquisou os costumes, as tradições e o folclore baiano e se destacou por pintar mulheres negras.
Três obras em acrílica sobre
 tela de Nide.
Era uma pessoa muito alegre e mesmo com o peso da idade sempre trazia no rosto uma risada larga que envolvia a todos que estavam ao seu redor. Os motivos afro tão presentes nos dias de hoje foram enaltecidos e pintados bem antes pela Nide que fez muitas exposições aqui e em outros estados brasileiros. Ela começou a pintar aos treze anos de idade e soube captar a essência da mulher negra baiana.

Embora não fosse uma artista negra ela com certeza foi uma das artistas que mais enalteceu a mulher negra e suas obras trazem não só a beleza, sensualidade, mas também mostrava essas mulheres no seu fazer diário fritando acarajés, nas suas cerimônias religiosas, na alegria das festas populares, nos sambas de roda. Não pintava figuras estáticas e sim com movimentos de corpos e vestes e fazia composições bem resolvidas e bonitas. Destaco além das rendas das vestes os esfuziantes torços coloridos com seus movimentos helicoidais.

Obra Lavagem do Bonfim, de Nide.
Fez mais de uma dezena de exposições individuais e participou de dezenas de coletivas aqui e em outros estados entre eles no  Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte, São Paulo e no Distrito Federal, Brasília. O último registro que tenho em meu blog foi de uma exposição que ela ia fazer no shopping Paralela, em Salvador, em 2006. Expôs várias vezes na Panorama Galeria de Arte, inclusive em 1970 fez sua primeira exposição lá com a apresentação do professor Humberto Lyrio .

 

sábado, 26 de outubro de 2024

CHICO MACEDO E SUA ARTE ANTENADA COM O UNIVERSO

O artista Chico Macedo retocando uma
obra no seu ateliê na Ilha de Itaparica.
O artista Chico Macedo é um dos mais criativos da Geração 80 na Bahia e tem uma influência sutil do barroco nas suas obras contemporâneas. Foi premiado no I e no II Salão Universitário em 1988 e de 1990, respectivamente. Já expôs no Espírito Santo, Goiânia e em São Paulo no Museu de Arte Contemporânea, MAC, em São Paulo e até mesmo em Paris, na França, na Galeria Leonardo. Vive antenado com os acontecimentos que ocorrem não apenas no seu entorno, mas também onde pode sua sensibilidade alcançar. Tem preferência de se expressar através a xilogravura criando imagens do inconsciente e realizando uma composição com formas e objetos do seu cotidiano. Vejo que nas pinturas também essas imagens surgem  até mesmo nas lembranças da sua infância quando lia as Histórias em Quadrinhos . Sua produção artística não é aleatória e sim  fruto das informações que dispõe e de sua escolha dentro de critérios  de uma formação artística.
 Durante os  quase dois anos da pandemia que se abateu sobre os habitantes deste Planeta, quando milhões morreram vítimas de um misterioso vírus vindo da China, ele passou na sua casa-ateliê na Ilha de Itaparica. Disse que neste período produziu bastante e se sentiu privilegiado por morar numa casa num condomínio fechado perto da praia e sempre que podia saía para espairecer olhando o mar. Mas, que as mortes de seus pais durante a pandemia foram um golpe muito forte e talvez estejam refletidas nas obras que produziu quase todas com a prevalência da cor preta, algumas relacionadas com o tempo, à tristeza e às lembranças. Numa delas tem um fotógrafo lambe-lambe tirando um retrato 3 x4 recordando na sua primeira  Carteira de Identidade . Esta obra traz no seu conteúdo a lembrança da sua juventude quando foi juntamente com seu pai para a Praça da Piedade tirar este retrato para sua primeira Carteira de  Identidade para se matricular no colégio. Noutro que denominou O Filho de Cronos ele se refere ao Deus da mitologia grega relacionado com o tempo, juntamente com Uranos e Zeus. O Cronos é o tempo mensurado, com dias, meses e anos, enquanto o Kairos significa o momento certo e oportuno, o tempo da graça de Deus.

Lembra a cena do assassinato do soldado 
que protestava contra o lock down da
pandemia no Farol da Barra.
Estes acontecimentos bateram forte na sensibilidade de Chico Macedo, porém sua reação ao invés de paralisar o impulsionaram a continuar pintando. Ao examinar as suas obras vemos que ele tem um caminho próprio de criar e que as figuras e objetos que inclui nas suas composições fluem livremente do seu inconsciente ganhando os espaços e o seus protagonismos próprios. Ele já usou peneiras de palha, papel maché, telas de pano para pintar com tinta acrílica e madeira nas xilogravuras. Recentemente descobriu uma placa de pvc que é utilizada na construção civil e está usando como suporte. Para Chico Macedo essas placas têm uma vantagem muito grande em relação ao papel porque como vivemos numa cidade com muita unidade os fungos quase sempre atacam o papel amarelando e deixando manchas. É verdade. Eu tenho algumas obras aqui emolduradas que estão amareladas e com manchas necessitando de um trabalho de restauro. Segundo ele as placas estão livres de amarelar e de serem atacadas por fungos.

                                                       QUEM É

Chico Macedo em 1999 no XXIII Salão
Regional de Feira de Santana, quando
 foi premiado.
Quando perguntei o seu nome completo o artista foi logo dizendo que tanto o seu como dos cinco irmãos foram inspirados em nomes de santos da igreja católica. Seu nome completo é Francisco de Assis Vieira Macedo é filho de Manoel Antônio de Macedo e de Josefa Vieira de Macedo, que era de Petrolina,Pernambuco. Ele nasceu em onze de abril de 1963 em Juazeiro no interior da Bahia, às margens do Rio São Francisco. Considera que seu trabalho artístico tem uma herança barroca devido a esta ligação de seus pais com o catolicismo. Desde cedo que a família frequentava com certa assiduidade a igreja e lá ficava observando as imagens e os detalhes dos templos. Fez questão de assinalar que seus pais tiveram uma influência muito grande na sua formação e os tem como uma referência positiva. Fez o curso primário na Escola Edson Ribeiro. Depois vieram para Salvador quando ele tinha dez anos de idade, porque sua irmã mais velha fez vestibular, foi aprovada e seu pai passou a trabalhar na Assembleia Legislativa.

Obra de Chico Macedo mostrando o
monstro com suas inúmeras garras em
 busca da vítima.
Ao chegarem em Salvador sua mãe d. Josefa Macedo levou os filhos para conhecer as principais igrejas da Cidade e também algumas praias. Chico Macedo lembra do choque ao ter o ´primeiro contato com o mar e ver aquela imensidão  azul. “Foi um choque porque conhecia o rio São Francisco e o seu entorno com o clima do sertão e agora estava diante do mar com uma atmosfera completamente diferente. Disse que durante a pandemia ficou refletindo sobre a importância dos rios e do mar para a humanidade. O Rio São Francisco em particular, onde convivi desde criança desempenhou ainda desempenha um importante papel para milhares de pessoas. Antes foi um dos caminhos para o povoamento e quantas cidades surgiram nas suas margens. Lembrei que os rios correm para o mar e que eu sai de Juazeiro e também vim para Salvador uma cidade praieira."

Chico Macedo, Joelino Ferreira, falecido, 
e Jackson Haje na Escola de Belas Artes.
Aqui estudou no Colégio Nobel onde concluiu o curso e em final de 1983 fez vestibular para a Escola de Belas Artes. Disse que foi um período muito criativo e que “os dias e as  noites pareciam que duravam para sempre”. Saíamos com um violão debaixo do braço para os quatro cantos da Cidade. Íamos e voltávamos tranquilamente sem qualquer preocupação com a violência. Curtimos muito a vida e hoje me assusta terrivelmente esta violência que estamos enfrentando. Meu Deus do céu como as noites nos anos 80 eram maravilhosas! Intermináveis! A gente voltava e até de carona de estranhos  sem preocupação com o  perigo.” Continuou mostrando sua preocupação com a violência. Mora há dez anos na ilha de Itaparica, numa casa num condomínio fechado e disse que desfruta de certa tranquilidade e segurança.

                                           MUITA ATIVIDADE

Chico Macedo e André
Monteiro no chamado
Porão, da EBA, 1994.
Relembrou que os dias e as noites nos anos 80 a Escola de Belas Artes eram preenchidos por  uma vida ativa de produção. Os professores e estudantes ocupavam as salas de aulas, de pintura e de gravura produzindo. Era uma efervescência e os alunos gostavam daquele ambiente. Tinhámos uma convivência saudável. Quantas vezes fiquei com o professor de gravura Michael Walker – ele se refere ao então professor Michael Eric Adolph Walker, Doutor em Belas Artes pela Universidade de Barcelona – Espanha, que ensinou um período na Escola de Belas Artes da UFBA e ao se aposentar foi morar na Europa. Não era só aquela relação do educando em somente assistir às aulas naquele período . A Escola era presente, funcionava mesmo com intensidade.  Outro dia estive na Escola e senti àquele vazio. Poucos alunos. As salas vazias, educandos apáticos. Não é saudosismo, e nem porque estou com sessenta e um anos de idade. Confesso que saí entristecido.” Fomos a tantas exposições inclusive fora do Estado e ainda éramos estudantes”. Tem uma frase que diz "não volte para onde um dia você foi feliz". Isto porque as pessoas não são as mesmas, tudo está modificado e você vai se sentir que aquela local  não tem mais qualquer ligação com você. Será um estranho naquele lugar.

Obra inspirada no retrato 3 x 4 que tirou 
num lambe lambe na Praça da Piedade 
 em 1954 para sua primeira identidade.
Quando perguntei como se sentiu ao concluir seu curso na Escola de Belas Artes em 1988 e  enfrentar o mercado de arte? Respondeu brincando que “foi um choque térmico. Participei de vários salões, sendo premiado em alguns e vieram os filhinhos. O primeiro foi quando morei no Espírito Santo. De lá fui morar em Goiás onde fiquei quatro anos e veio novo relacionamento e uma filha. O terceiro filho foi com uma colega de profissão, e finalmente veio a caçulinha, que espero ser a última, de um relacionamento com uma paulista.” Chico Macedo tem um jeito peculiar e afetivo de falar não apenas da sua arte como também do seu jeito de ver a vida. Para ele os relacionamentos não deram certo porque as pessoas costumam exigir e reclamar de tudo. O time dele é diferente. 
Trabalhou na Fundação Mãe, que tem sede no Ogunjá e ensinou Educação Artística numa escola no bairro de Canabrava.  Na época existia nas proximidades o lixão que estava em atividade e que depois foi aterrado e construído o Barradão e o bairro se expandiu. Em seguida ensinou na cidade de Camaçari, na região Metropolitana de Salvador. Recentemente deu entrada na sua aposentadoria porque disse ter uma comorbidade de pressão alta e que por ter trabalhado em Canabrava recebeu o atestado de insalubridade e assim reduziu o tempo para se aposentar.  

Nesta obra vemos o Fantasma das revistas 
em quadrinhos ameaçado pelo gorila.
O nosso encontro aconteceu no meu escritório no edifício Mundo Plaza e ao olhar algumas obras nas paredes ele relembrou de sua infância com sua mãe lhe levando para visitar as igrejas. “Vejo aqui que esses trabalhos trazem no seu bojo um barroquismo.
 Eles estão carregados de informações. Percebo o barroquismo até nas xilogravuras do cordel.” E continuou : “Nas pinturas que estou fazendo agora tem uma herança da gravura e as cores estão surgindo bem devagar. Estava muito assustado com a pandemia com a morte de meus pais e de amigos queridos. Claro que este sofrimento com as perdas me assustou muito e ficava pensando que eu poderia ser a próxima vítima. Foram momentos angustiantes, mas superei. Felizmente moro numa casa à beira mar e aí saía para espairecer, ver a beleza do mar, as ondas no seu vaivém e ainda conseguia comprar uma cervejinha e assim o tempo passava.” Acredita Chico Macedo que com o passar do tempo à medida que for pintando as cores tendem a aparecer com mais intensidade. Estava pintando coisas pequenas de 50 x 40, mas já está pintando em suportes de mais de um metro.

Chico Macedo falou da importância do 
diálogo e do contexto de suas obras
.
Revelou que  “era um crítico ferrenho de terapias. Dizia que eram enganadores e hoje estou fazendo e me sentindo muito bem. Só o fato de ter alguém disposto a me ouvir ajuda muito. Levo as obras de arte e fico falando sobre meu processo de criação. Tudo isto refletiu em cada obra que fiz."
Num texto que me enviou intitulado O Lugar Que Não Existe Mais o artista Chico Macedo diz: “Lembro que os maiores influenciadores para essa jornada, foram meus pais, isso, em um tempo analógico me deixa em pânico. Quando mergulhamos fundo no passado, trazemos boas memórias e junto com isso, vem imagens que queremos apagar de alguma maneira ou transformá-la."

Hora de dialogar sobre a vida .
Acrílica sobre placa de PVC.
"Esse medo foi forjado ou tomou corpo, durante a pandemia onde o isolamento e o pavor contra o vírus, me fez procurar alternativas através da arte. A memória não é um lugar lacrado, mas quem não sabe o caminho a tomar, qualquer beco serve. Por isso, o caminho da memória foi a porta para os desenhos se abrigarem. Hoje vejo que essas imagens são um testemunho de experiências com valores diversos, positivos e negativos com impactos profundos. A ausência é contínua, quando lembro desse universo analógico, lembro que comecei por aí. Esse momento novo revelou uma capacidade difícil de enfrentar. 
A natureza gosta de explodir em cores e diversidades, assim como alguns humanos fazem. Sabemos que a arte é o legado de nossa cultura é a que afirma a nossa identidade, documentando nossa história, embora enriquecida com metáforas e imaginários diversos em geral cada universo de expressão, traz à tona suas verdades ocultas, ativando a fertilidade das coisas”. 

                                                      EXPOSIÇÕES E  PRÊMIOS

Chico Macedo no Salão de Feira de
Santana, em 1999
.
Em  1988 - I Salão Universitário com Conjunto de Pinturas- Salvador- Ba; 1990 -II Salão Universitário com Conjunto de Pinturas - Salvador- Ba; 1991 -  
I Bienal do Recôncavo; 1994 -
I Bienal Internacional Afro-Americana de Cultura - Salvador - Ba ( foto ao lado), I Salão do Museu de Arte Moderna da Bahia  ; 1995 - III Bienal do Recôncavo; XI Salão Regional de Artes Plásticas da Bahia ; 1997 -Salão dos Novos Valores - Goiânia – Goiás ; 1998 - IV Bienal do Recôncavo- São Felix- Ba. - Prêmio Aquisição;  Tropicália 30 Anos - 40 Artistas Baianos; -1999 -XXIII Salão Regional de Feira de Santana Ba. - Prêmio oficial; 2000 - Exposição Individual na Galeria ACBEU, Slvador-Ba; 2000 - V Bienal do Recôncavo; 2006 - VIII Bienal do Reconcâvo.

 EXPOSIÇÕES COLETIVAS - Em 1996 - Jovens Artistas da Bahia-MAC- São Paulo-SP; Wordwide Print Exibition Portland Art Museum - Oregon-USA ;  1998 - Bahia/ Paris - Galeria Leonardo - Paris – França; 100 Artistas Plásticos da Bahia; Arte Salvador - 450 Anos;  2002 -Pintura Bahia - MAM – Salvador-Ba.  

EXPERIÊNCIA - Atua desde 1995 como professor instrutor de arte educação na Fundação Cidade Mãe. Foi professor substituto da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia - UFBA.

TRAJETÓRIA - 1. 2004 a 2005 - UFBA-Escola de Belas Artes - Departamento de Desenho e Escultura -Cargo: Prof. Substituto de Desenho I, Gravura I e Il e Técnica e Processo Artístico. 2. 1998 a 2007 - Fundação Cidade Mãe - Cargo: Instrutor da Oficina de Artes Plásticas. 3. 1995 - UFBA- Escola de Belas Artes- Departamento de Desenho e Escultura - Cargo: Prof. Substituto de Desenho I e IV, Gravura I.

CURSO- SEMINÁRIO - E1996 - Curso de Arte e Educação - Museu de Arte da Bahia - Salvador-Ba; Congresso Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas- USP -- São Paulo- SP.  2002 - Seminário: As Formas Híbridas da Arte e Suas Relações entre a Escultura a Fotografia MAV- Escola de Belas Artes -UFBA; Curso; História da Fotografia Contemporânea Espanhola - MAV- EBA - UFBA.



sábado, 19 de outubro de 2024

RESCÁLA UM MESTRE PINTOR E O MAIOR RESTAURADOR DA BAHIA

Aqui o mestre colocando  etiqueta 
de identificação numa obra
.
o mestre Rescála era conhecido por sua competência técnica,  paciência durante o processo de criação, além da docilidade em tratar as pessoas. Se esmerava  na escolha das tintas, na apuração do desenho para formatar a composição de suas obras   autorais e de restauração  buscando os detalhes escondidos por debaixo de camadas de tintas. Estava sempre pronto para ouvir e tirar dúvidas de alunos e mesmo de pintores consagrados sobre o seu ofício. Lembro das vezes que o procurei da sua disposição em falar sobre sua obra,  com muita tranquilidade enquanto ia acendendo um cigarro atrás do outro. Era um artesão porque cuidava dos detalhes das tintas e dos suportes que ia utilizar  com a mesma dedicação daqueles artesãos do início do século XIX que tanto nos fazem falta. Criterioso, sempre tinha uma palavra de alento para os jovens que se inquietavam com a demora do sucesso. Como um monge ia construindo o seu mundo pictórico. Rescála não pode ser visto apenas como um grande restaurador. Rescála era também,  um pintor que soube como ninguém documentar a ambientação da Bahia antiga com sua gente calma andando por ruas quase desertas e retratar seus personagens populares e autoridades . O conjunto de sua obra é o reflexo do temperamento do mestre Rescála que orientou gerações e mais gerações.

                                                 PROFESSOR EMÉRITO

Rescála recebendo o título de professor
Emérito das mãos do Reitor da UFBA,
Luiz Fernando Macedo Costa
.
Lembro-me quando em 1983 Dr. Jorge Calmon, Redator Chefe de A Tarde   recomendou que queria uma boa cobertura de uma solenidade na Reitoria. Tratava-se da homenagem da Universidade Federal da Bahia - UFBa àquele que dedicou grande parte de sua vida na formação de novos artistas. Assim das mãos do Reitor Luiz Fernando Macedo Costa o mestre João José Rescála, aos 73 anos de idade, e 31 anos de ensino recebia o título de Professor Emérito. 
Foi uma sessão concorrida e o auditório da Reitoria estava repleto de ex-alunos, amigos e parentes. Foi uma homenagem justa e contou com a aprovação unânime do Conselho Universitário, que homologara uma decisão da própria Congregação da Escola de Belas Artes.  Coube a professora Ana Maria Leite da Silva, traçar o perfil do homenageado. Ela que recebera tantos ensinamentos do mestre não teve dificuldades de dizer em público que falava com grande emoção e alegria "do homem, do mestre, do restaurador e do grande amigo". O mestre Rescála nasceu em 8 de janeiro de 1910, no Rio de Janeiro. Descendente de libaneses, enfrentou quando criança, as dificuldades e até discriminações no meio em que vivia, mas nada o afastou da sua inclinação natural de abraçar a arte. Por motivos financeiros não pôde ingressar na Escola Nacional de Belas Artes, porém, frequentou com assiduidade o Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro e, em 1928, já realizava a sua primeira exposição, ocasião em que recebeu a Medalha de Prata. Daí foi um trilhar de sucesso. Conseguiu por volta de 1928 entrar definitivamente na Escola Nacional de Belas Artes. Em 1931, participou do grupo que criou o Núcleo Bernadelli, contrário à discriminação e paternalismo que imperava naquela época nos chamados salões oficiais. Fico a lembrar como teria sido a participação do mestre Rescála, porque o seu temperamento não era próprio ao debate, às disputas. Preferia sempre trabalhar no silêncio do seu  ateliê , recomendar um acordo e disposto a acalmar os ânimos.

                                                NAMORADO DA BAHIA

 

 O Retrato de Meus Pais obra
premiada com a viagem
.
E
m 1937 com a obra Retrato de Meus Pais, recebeu um dos maiores prémios dados aos artistas naquela época.  O artista foi agraciado com o Prêmio de Viagem pelo Brasil, tendo escolhido o Norte e Nordeste. Foi aí que começou sua grande paixão pela Bahia, tendo mantido contato com o diretor da então Escola de Belas Artes, Manuel Inácio de Mendonça Filho, que mais tarde o convidou para lecionar em Salvador. Portanto, o convite lhe foi feito em 9 de maio de 1952 para ocupar a cadeira de Teoria da Restauração e Conservação da Pintura. Ganhou a Bahia, porque nos anos que aqui viveu, o mestre Rescála foi um inimigo do descaso, dos cupins, das traças, dos insensíveis que estão a postos para destruírem as obras de arte. Como um Don Quixote de espátula e pincéis em punho ele ia calmamente restaurando e descobrindo beleza! Quantas e quantas pinturas estavam escondidas por baixo de grossas camadas de tintas e sujeira, O mestre Rescála ia removendo-as com carinho, com muito cuidado e competência.

O mestre pintou muitas vezes a 
 bela Lagoa do Abaeté .
Ao lado deste trabalho ele cultivava a sua cátedra. Depois de concursos bem sucedidos, além de professor, foi diretor, vice-diretor, presidente de bancas examinadoras e chefe de departamentos da Escola de Belas Artes. Ainda na sessão solene quando recebeu o título de Professor Emérito da UFBa, ele disse ser “um eterno namorado da Bahia.” Lembrou de Mendonça Filho, que o convidou a viver aqui, ressaltou o desempenho da Escola de Belas Artes ao longo dos anos. "dos seus relevantes serviços nos planos artístico e cultural desta terra". Não esqueceu de seu velho companheiro Alberto Valença "de sensibilidade apurada, um dos maiores pintores contemporâneos do Brasil".

                                            NÃO SOU ACADÉMICO

Rescála ao centro, Reynivaldo e Ivo Vellame 
selecionando as obras do 2º Salão Nacional 
da Federação Nacional das ABBS, 1982
.

Ele reagia quando alguém o classificava de acadêmico. Quem conhecia a sua  trajetória pictórica e sabia dos seus ideais jamais o classificaria de um acadêmico, com todo o significado que essa palavra encerra. Ele foi um dos fundadores da Arte Moderna aqui e acima de tudo foi um dos que produziu trabalhos visando a modernização da arte brasileira. Junto com Edson da Mota, Djanira, Da Costa, Jordan Oliveira, Manuel Santiago e Pancetti o mestre Rescála foi um dos cabeças deste movimento modernista. Talvez por residir na Bahia, e estar, portanto, fora do grande mercado de arte é que sua grandiosidade ainda não foi espalhada em todo o País. Dizia que era professor por acaso. Modéstia do mestre, porque desde que frequentara o Núcleo Bernadelli que muitos jovens o procuravam para saber como pintar. Disse-me certa vez que no Núcleo Bernadelli onde conheceu Pancetti, que era então sargento da Marinha, "nós exercitávamos pintar com modelos ao vivo e fazíamos muitos croquis para assim podermos dominar o desenho. Não acredito que alguém seja um grande pintor se não sabe desenhar". Veja que lição para os jovens! Ninguém pode ser um grande pintor sem saber

Obra inspirada no movimento surrealista.
desenhar! E, quantos andam por aí querendo ser pintor sem saber desenhar coisa alguma. Esta lição do mestre Rescála deve ser tomada com muita seriedade para que esses possam se dedicar ao desenho como o primeiro passo de uma carreira pictórica. Também ensinava que os jovens não devem limitar-se aos trabalhos da escola. "É preciso treinar, pintar e desenhar sem parar para dominar as técnicas, formas e cores. Falando sobre a arte brasileira e sobre um de seus expoentes Cândido Portinari, disse: "Quando iniciávamos o nosso núcleo recebemos muito apoio de vários setores renovadores do Rio de Janeiro. O Movimento Modernista ganhava corpo, também em São Paulo. Naquela época Portinari estava na Europa e quando retornou já havia acontecido a Revolução de 30 , lembrou Rescála. Os vitoriosos deram-lhe todo o apoio necessário para que prosseguisse o seu trabalho que resultou numa obra monumental".

Rescála pintando mural com alunos
da Escola de Belas Artes
.
Como podemos observar, o mestre Rescála foi testemunho de grande parte da história recente da arte brasileira e um de seus protagonistas. Sempre esteve longe das trombetas e das noites grã-finas. Preferia o seu ateliê e o convívio da sua família. Disse certa vez "esta história de que sou acadêmico é maldade que fazem comigo. Eu já passei por várias fases e hoje faço uma arte que tem uma personalidade própria. Uma pessoa que entende de arte — argumentava — é capaz de identificar um quadro de minha autoria. Isto é importante para o artista. A personalidade de sua obra. Mas, eu nunca poderia ser um acadêmico, pois além de fundador do Núcleo Bernadelli que incentivou e produziu obras modernistas também participei do Salão Nacional de Arte Moderna que era onde as expressões mais importantes do modernismo brasileiro expunham os seus trabalhos". 
O mestre Rescála deixou também transparecer numa entrevista publicada no jornal  A Tarde em 1976 o seu protesto quanto à procura gratuita do sucesso: "Ganhei vários prémios nesses salões e deixei de participar porque estava pornográfico. Estão confundindo arte moderna com pornografia. Esta tal arte erótica eu considero algo sem sentido. Uma fotografia de uma revistinha dinamarquesa funciona muito melhor, se o problema é o erotismo. Acho esta tal, de arte erótica uma imoralidade e muitos talentos estão sendo desviados. Aqui na Bahia temos exemplos que são de conhecimento de todos."

                                                 SEU GRANDE IDEAL

Obra Passeio  do mestre Rescála.
Além do ensino e restauração, Rescála se deliciava com a pintura. Dizia que era o seu grande ideal. "Jamais deixei e não deixarei de pintar" — sentenciou certa vez, e assim prosseguiu até a hora de sua morte. Mesmo doente continuava pintando. E, é preciso que as gerações futuras vejam em Rescála, em primeiro lugar, o grande pintor que ele foi e depois o restaurador e o mestre. Sempre que podia chamava a atenção para não confundirem a sua obra como de cunho acadêmico. "Pinto ou faço uma arte mais objetiva onde surge com grande força a figuração, mas nunca me chamem de acadêmico. O que sou na realidade é um pintor de costumes, um realista lírico. O realismo se faz de várias formas e eu tenho a minha própria. Agora, quando faço retratos quero ser acadêmico, isto não desmerece ninguém. Porque o retrato é a documentação que faço e tem que ser parecido com as pessoas que pinto."

E abria o seu leque mostrando quanto era democrata, quanto de bom ele era e como defendia o direito de cada um ser aquilo que deseja ou fazer aquilo que mais o agrade. “Quanto ao meu conceito de liberdade de expressão é abrangente. O artista pode ser moderno, acadêmico ou clássico porque ele escolheu esta opção. É um problema individual, de sentimento. Se não faz o que gosta é um falso. É dentro deste pensamento que realizo o meu trabalho. Meus quadros são concebidos nessa linha de pensamento e ação".

                                                         O CIDADÃO

O mestre João José Rescála retratado em 
sua atividade de restaurador.
Outra homenagem que lhe prestaram os baianos foi a concessão do Título de Cidadão de Salvador pela Câmara Municipal, em 1982. Foi numa cerimónia informal em sua residência que o carioca de nascimento recebeu a homenagem dos baianos que tanto o admiram. Trinta anos de Bahia, já era tempo de ter a  cidadania baiana. E no dia, com a sua doçura, mostrava-se - preocupado em informar ou esclarecer a todos, especialmente aos jornalistas presentes que estava recebendo a homenagem em casa por recomendação médica. A doença já prejudicava suas ações e seus parentes estavam, de certa forma, preocupados para que ele não se emocionasse com muita intensidade. O velho coração do mestre já estava cansado de tanta emoção, já estava aos poucos diminuindo as suas atividades.

        A DESPEDIDA

Rescála deixou um legado inestimável
salvando  importantes obras com seu
ofício de restaurador e belas pinturas .
 O professor João José Rescála  faleceu no dia 7 de julho de 1986, às 21 horas, na Clínica Check-up, e, foi sepultado às 17 horas, do dia 8 , no Cemitério Jardim da Saudade, com grande acompanhamento de seus alunos, amigos e parentes. Com o desaparecimento do mestre Rescáia a Bahia perdeu não apenas o mais importante restaurador que, nos últimos anos contribuiu significativamente para salvar grande parte do seu patrimônio cultural, mas também um artista invulgar e uma das pessoas mais ternas que já passaram pela Escola de Belas Artes. Um homem de espírito desarmado, doce, sempre disposto a transmitir aos novos e velhos companheiros de ofício os mistérios da arte de pintar. É conhecido que normalmente os mestres não ensinam a seus alunos "o pulo do gato ", os segredos da profissão, porém isto não acontecia com o mestre Rescála que estava sempre despojado para repassar aos outros aquilo que aprendera no silêncio das sacristias das igrejas, conventos ou mesmo nos salões majestosos dos palácios. Paciente, ele trabalhava em silêncio, e na sua humildade nunca soube desfrutar de sua grandiosidade, porque faltou-lhe — o que sobra em muitos — a disposição de buscar notoriedade.

                Depoimentos de alunos e amigos

Sante Scaldaferri — Rescála era um homem manso. Um excelente professor e a Bahia deve não apenas na parte cultural do património, mas acima de tudo as suas técnicas. Era nosso consultor. Ainda guardo um caderno de suas observações que sempre estou consultando quando tenho dúvidas. E complementa: "A técnica da encáustica que uso para fazer os meus trabalhos me foi ensinada pelo mestre Rescála. Seu desaparecimento deixa uma lacuna muito grande na Bahia cultural".

Calasans Neto — Não fui aluno do mestre Rescála, mas durante o período que utilizava o ateliê de gravura da antiga Escola de Belas Artes que funcionava na Rua do Tijolo, no Centro histórico de Salvador-Ba a sala de gravura ficava vizinha da sala de restauração onde ele trabalhava. Aí tive a feliz oportunidade de conhecer um dos homens mais competentes dentro de seu ofício, fazendo um trabalho que eu não conhecia, um trabalho que só as pessoas abnegadas e providas de espírito superior conseguem fazer que é a restauração. Por intermédio desta vizinhança conheci um pintor que desassociava a sua arte de restaurador a de criador, que era o mestre Rescála. Convivi alguns anos junto a ele e pude sentir a grandiosidade não apenas do criador, mas do ser humano que ele era. Sempre gentil e nunca escondendo aos alunos os mistérios do seu ofício.

Obra  A Praça .Uma cena  antiga.
Carybé — Rescála era uma pessoa que mais mereceu o título de Mestre. Foi como pessoa, como artista e como professor um exemplo para as futuras gerações. Começou com Pancetti na arte moderna, no do ano de 1922, mas no movimento modernista do fazer, do realizar através do seu próprio oficio. Ele foi um dos que deram força ao modernismo, responsáveis por seu prosseguimento no Núcleo Bernadelli, do qual foi fundador, e de lá saiu para restaurar e salvar o patrimônio da Bahia. Era um grande artista! Um grande técnico a ele devemos a ressurreição do Convento de Santa Tereza, do Solar do Unhão, de palácios e muitas igrejas. Ele sabia restaurar e pintar como ninguém. Era um homem doce. Sempre pronto para responder com civilidade e carinho a qualquer dúvida. Diversas vezes o procurei para tirar dúvidas e sempre recebia lições. Cada consulta era uma aula de técnica e sabedoria.


Retrato de Dom Avelar
Brandão Vilella.
Mirabeau Sampaio 
O  Mirabeau ainda não sabia da morte de seu amigo Rescála. Na qualidade de jornalista lhe telefonei para tomar o seu depoimento, na certeza de que ele já tinha recebido a triste notícia. Porém, Mirabeau continuava falando como se ele estivesse vivo. Daí perguntei se tinha sabido do ocorrido e Mirabeau entristeceu. A voz ficou um pouco embargada e disse: "Vejo o mestre Rescála com muito respeito. Era um grande técnico e mais do que isto um grande artista! Nada de improvisação na sua obra. Tudo era feito com responsabilidade. Sabia como ninguém a arte de pintar. Só se pode fazer elogios ao mestre Rescála e é com muita tristeza que falo neste momento. Coitado de Rescála!'- desabafou Mirabeau. Eu admirava muito ele. Não havia uma pessoa de tão boa vontade e tinha muito que transmitir. Tinha alegria quando a gente telefonava para esclarecer uma dúvida.

Carlos Bastos — Tinha muita admiração por Rescála. Lembro que uma empresa o chamou para fazer a restauração de dois painéis de minha autoria e nunca lhe pagou. Ele recebeu aquela atitude condenável com resignação. Uma vez pintei o seu retrato no painel da Assembleia Legislativa, mas o fogo devorou tudo. Acho que ele era mais restaurador que pintor e assim formou uma escola de bons restauradores baianos. Como pessoa humana era sensacional, uma doçura de pessoa.

Jacy Brito (galerista) — Por várias vezes Jacy Brito fez exposições com trabalhos de Rescála. Para ela o mestre deixa uma perda indiscutível para a Bahia. Trabalhava na discrição, no silêncio. Quantas coisas importantes obras foram salvas por Rescála! Professor de várias gerações de artistas. Não tinha as trombetas do sucesso tocando para ele, embora fosse um dos grandes mestres da pintura da Bahia. Como professor, o que ensinou a várias gerações vai permanecer para sempre.

Mulheres buscam água na fonte .Vejam  
os movimentos das vestes e corpos
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Zivé Giudice — O professor Rescála era uma dessas pessoas carismáticas. Detinha a sabedoria do tempo e sempre assediado pelos alunos curiosos, a resgatar-lhes as dúvidas. A sua presença na Escola de Belas Artes da UFBa era sempre tranquilo e disponível, conferia àquela instituição conceitos que só os grandes mestres conseguem.

Ivo Vellame — O professor Ivo Vellame colega do magistério de Rescála também ressaltou as qualidades do mestre dizendo: "Estou muito sentido com o desaparecimento do professor Rescála. Ele era uma dessas figuras raras, que de vez em quando surgem na Terra. Além de ser um mestre no seu ofício de restaurar era uma criatura humana indescritível. Sempre atento para servir, sempre tinha uma palavra de carinho para com aqueles com quem convivia. A Bahia perdeu um grande mestre da restauração e da pintura. Mas sua obra será perpetuada porque é grandiosa". 

reynivaldobritoartesvisuais.blogspot.com

NR-Este texto foi publicado no Jornal A Tarde no dia 9 de julho de 1986, dois dias após a morte do pintor . Agora foi revisado e adaptado. As fotos foram cedidas pelo seu filho o médico cirurgião geral dr. Jorge Rescála.