sábado, 25 de março de 2023

DUDA DIVIDIU SUA VIDA ENTRE A ARTE E A BOÊMIA

Mestre Duda na prensa onde imprimia  gravuras na EBA.
Vou falar hoje de um homem simples e libertário que abraçou a arte e a boêmia como seu estilo de vida. Nunca quis trabalhar com horário fixo e até mesmo seu relacionamento amoroso sempre foi livre. Embora um homem alto e corpulento sempre foi calmo, introspectivo, de poucas palavras, temperamento afável e pronto para ajudar. Atualmente está magro e fragilizado devido a idade e também porque era um boêmio que bebeu e fumou muito. Me disse que teve uma grande paixão na sua vida, e relutou em dizer o nome, mas que é uma professora que mora em São Paulo. Confessou que fez algumas viagens para encontrá-la e que ela sempre vinha aqui em Salvador pra ver a mãe, quando se encontravam. Mas, com a pandemia perdeu completamente o contato. Calmo e meticuloso gostava de varar as noites baianas em noitadas memoráveis com seus amigos de copo. Fumante inveterado e mesmo com o peso da idade, já mostrando fragilidade e dificuldade no andar não largou o maldito do cigarro. Estava sumido da Escola de Belas Artes a qual frequentava quase diariamente há décadas. Foi a pandemia e alguns probleminhas de saúde que lhe impediram de frequentar o local de sua preferência, talvez até mais do que sua própria casa. Num rápido depoimento dado a Revista Miolo em 2018 a diretora da EBA, Nanci Novaes confirma que "ele nunca quis aceitar cargos de funcionário porque não queria ficar preso a horários”.
Duda com pasta de xilos.

 Após publicar uma matéria neste blog sobre a exposição de gravura que está acontecendo na Galeria Cañizares, da Escola de Belas Artes da Ufba vi um comentário do artista Leonel Mattos onde diz que o Duda não podia estar de fora. Acontece que tem uma gravura e uma matriz de autoria do Duda na exposição, mas me despertou o interesse em entrevistá-lo. Saí perguntando pela EBA e a muitos outros artistas, e ninguém sabia o seu paradeiro. Sumira. Foi então que o professor de gravura Evandro Sybine lembrou que deu algumas caronas ao Duda e que ele descia nas imediações onde funciona um posto de gasolina, na entrada do Calabar. Dias depois me encaminhou uns mapas que tirou do Google Maps. De posse destes mapas lembrei que a artista plástica e restauradora Marluce Morais Brito, mora por aquelas bandas no Jardim Apipema. Disposta que é, saiu a campo e descobriu onde o Duda estava entocado e conseguiu o telefone da sua irmã ainda viva a d. Janete, que foi muito solícita, e então marcamos para nos encontrar na segunda-feira, dia 13 de março. Claro, que o encontro com o Mestre Duda aconteceu na Sala de Gravura da EBA, seu lugar preferido.

                                                                   SUA IMPORTÂNCIA 

Bela matriz de xilo do Duda.
A importância de Eduardo França dos Reis, o Mestre Duda, como é mais conhecido para a História da Gravura Baiana é assegurada pela qualidade da sua obra e de seu envolvimento com esta técnica artística desde a década de 60. Quando a Escola de Belas Artes funcionava no amplo casarão da Rua 28 de Setembro, em pleno Centro Histórico, de Salvador, o Mestre Duda já a frequentava com certa regularidade. Assistiu muitos cursos livres e mesmo aulas de algumas disciplinas que lhes interessavam como Desenho, Pintura, Cerâmica, Composição,  mas o que lhe conquistou foi a Gravura, especialmente a xilogravura. Teve inicialmente a orientação do professor Henrique Oswald, depois Mário Cravo Jr., Hansen Bahia e Lobianco. Sua infância foi no bairro da Barra, numa casa simples onde seu pai um alfaiate conhecido que costurava para os homens abastados entre comerciantes e políticos, inclusive costurou alguns ternos para o governador Antônio Carlos Magalhães. Morava com a esposa e seus cinco filhos na Rua Cesar Zama, nas proximidades do clube social Associação Atlética da Bahia. O alfaiate Gustavo Hipólito dos Reis e d. Joana Digna dos Reis tiveram cinco filhos, e o Duda nasceu no dia 19 de outubro de 1939, e foi na alfaiataria do pai que ainda criança reproduzia em pedaços de pano e também no papel as estampas de tecidos e personagens dos gibis.

 Na sua dissertação de Mestrado o artista plástico Adriano Luiz Ramos de Castro, no ano de 2010, escreveu na página 37 que "Duda é talvez, depois de Calasans Neto, o nosso maior representante na gravura Moderna da Bahia. Ressalta que ele produziu por mais de quatro décadas e que “uma de suas principais características é adicionar às suas matrizes, todo e qualquer meio que possa ser utilizado para dar texturas, como palitos de picolé, lixas, palhas, rendas e outros materiais. Com isto ele tece uma trama labiríntica colorida, formando um grande mosaico, que se tornou uma característica fundamental em sua obra.” A temática que Duda utiliza é sempre enfocando os locais de suas andanças como o Porto e Farol da Barra, Mercado Modelo, Elevador Lacerda e as festas populares. Quando ia à São Paulo também fazia algumas gravuras inspiradas na temática paulista.

                                            AMOR PELA XILOGRAVURA

"Quem me Vio/Porto da Barra".
Foi atraído pela xilogravura no contato que teve na Escola de Belas Artes através o artista plástico e professor Henrique Oswald que lhe deu as primeiras orientações, e em seguida Mário Cravo e o grande gravador Hansen Bahia. Gosta de produzir gravuras de tamanho médio, utilizando três cores básicas o verde, vermelho e azul, trabalhando com duas matrizes. Também utiliza de lápis de cor para fazer alguns trabalhos e pintar suas gravuras. Suas obras retratam a nossa Salvador, as festas tradicionais e tem também obras abstratas que surgem da estilização da paisagem e dos personagens populares baianos.

O crítico de arte Eduardo Evangelista não concorda com os que insistem em afirmar que o Duda seja um autodidata porque mesmo não sendo matriculado regularmente na Escola de Belas Artes recebeu informações valiosas de grandes mestres da gravura como Henrique Oswald, Mário Cravo Jr., Hansen Bahia e Lobianco, além da convivência com outros professores e alunos. Foram noções de técnicas, processos, composição, perspectiva e o equilíbrio na obra de arte que  aprendeu. Ele pode ter limitações em discorrer teoricamente sobre assuntos técnicos e estéticos, mas é um mestre na execução, no fazer.

Pasta com as xilos destruídas pelos cupins.
Também o professor da EBA, Herbert Magalhães, já falecido, escreveu num pequeno artigo no jornal A Tarde em fevereiro de 1991 destacando a sua preferência por gravuras pequenas e médias. Registrou que Duda lhe disse "Não me dou bem com gravuras grandes". E que as gravuras abstratas são feitas baseadas nas figuras que ele vivencia e procura simplificar.

Já participou de várias exposições coletivas e individuais  inclusive da Primeira Bienal Nacional de Artes Plásticas, que foi realizada em Salvador, no Convento do Carmo. Numa mostra no Ebec, na Pituba, em dezembro de 2006, juntamente com outros artistas expôs suas matrizes de xilogravuras. O seu sonho foi expresso algumas vezes quando entrevistado que era sobreviver da própria arte que abraçou para toda sua vida. Mas, a situação econômica depois que seus pais falecerem sempre limitou sua vida. Por isto escolheu gravuras pequenas e médias, e também usar papel canson de fabricação nacional e até mesmo na sua de vida boêmio a cachaça por ser barata.

                                               BOÊMIA E POUCA GRANA

Duda fumando na
EBA
.
Disse ter saudades do tempo em que era um boêmio contumaz pelas ruas e bares de Salvador. Como não tinha dinheiro suficiente para consumir bebidas caras e até mesmo cerveja "sempre bebia cachaça por ser mais em conta" . E em suas andanças pelos bares da vida conheceu o cantor e compositor Raul Seixas que era parceiro de copo. Relembrou que Raul gostava de frequentar a Cantina do Porto e que um dia chegou a encontrá-lo deitado no chão completamente embriagado. Lembrou que outra vez estava conversando com um engraxate que tinha sua cadeira ali no Porto da Barra e mostrou-lhe o Raul Seixas com uma namorada na balaustrada. O engraxate duvidou e ele foi até o Raul Seixas que lhe deu uma grana. Comprou uma garrafa de cachaça e fez o engraxate beber uma dose caprichada da branquinha, quase o copo cheio! O engraxate teimoso, também gostava de beber.

Perguntei se era verdade uma história que contam que teria encontrado com o artista plástico Edson da Luz que estava em companhia de um crítico famoso, (não lembra o nome), nas imediações do Elevador Lacerda, e o colega baiano lhe pediu que mostrasse suas gravuras. Ele tirou do bolso uma gravura feita em tecido, toda amassada e apresentou aos dois.  O Duda disse ser verdade, só que isto aconteceu em São Paulo, e que tinha saído com algumas gravuras, mas vendeu por onde passou e gastou o dinheiro todo com bebidas. Naquela hora vinha da farra que fizera durante toda a noite. Sua presença em São Paulo foi porque ele acompanhou uma caravana de professores e alunos que foram de ônibus para a capital paulista com o objetivo de visitar uma das edições da Bienal Internacional de São Paulo.

                                                         PRESERVAÇÃO DAS GRAVURAS 

Esta xilo estava entre as 
destruídas pelos cupins.

O Mestre Duda sempre manifestou certa preocupação em preservar suas obras de arte por ter consciência de que o suporte de papel tem certa fragilidade, especialmente na Bahia onde a umidade é grande devido à proximidade do mar. Por isto guarda suas gravuras em pastas cobertas de plástico, em envelopes de papel. Porém, neste nosso encontro teve uma surpresa desagradável. Ao abrir um armário de aço onde guarda suas gravuras, na EBA, retirou uma pasta de plástico de cor azul. Ali tinha guardado dezenas de gravuras e me entregou para abri-la. Quando abri todas as gravuras estavam quase totalmente comidas pelos cupins que fervilhavam, e de repente ainda saiu da pasta um piolho de cobra, com cerca de cinco centímetros, que tive de pisotear até matar. Eram tantos cupins que não dava para deixar a pasta por perto e tivemos que jogar no lixo. Ele ficou em silêncio por um breve período e depois se refez, Pegou outras pastas que continham mais gravuras. O pior é que Mestre Duda não tem mais a maioria das matrizes das gravuras destruídas pelos cupins, porque ao terminar de tirar as cópias ele costuma pintá-las e vende-las. Portanto, será difícil recuperá-las para fazer novas impressões.

Duda ladeado pelo professor Sybine e eu.
Também o Duda é um exímio impressor. De sua convivência com professores e alunos e
mesmo ao imprimir suas gravuras tornou-se um impressor respeitado e requisitado. Professores e alunos sempre contam com sua boa vontade para imprimir suas obras. Tive a oportunidade de ver um tríptico impresso em lona de autoria da artista Terezinha Dumet que mostra a habilidade do impressor que o imprimiu . 

Xilo "Carrregador de Tijolos".
Outra curiosidade do Duda é que ele não enumera cada uma das cópias de suas gravuras. Assina Duda, escreve série 0/50, o ano, xilo, coloca o nome da gravura, quase sempre de um monumento importante, estórias de gente de nossa Bahia como de vendedores ambulantes, carregadores, baianas do acarajé, pescadores, etc. Praticamente em algumas xilogravuras ele conta pequenas estórias desta gente.

Duda lembrou que quando era mais jovem ia nos finais de semana para a casa de Henrique Oswald o qual naquela época tinha uma prensa bem melhor que da Escola de Belas Artes e lá imprimia suas gravuras. "Às vezes passava os finais de semana por lá. ". Quando indagado onde ficava a casa do professor respondeu que era "para as bandas da Boca do Rio", não soube precisar o bairro e nem a rua.

 

 

 

24 comentários:

  1. Duda é um exemplo de vida simples, boa e de bem com o Universo.

    ResponderExcluir
  2. Marluce Maria Morais Brito
    Oi primo, que trabalho maravilhoso essa,sua homenagem tão merecida ao nosso querido Mestre Duda que sempre foi amigo de todos nós quando alunos da Escola de Belas Artes! Passava o dia inteiro ali na sala de gravura, criandos suas "xilo" e nos ajudando. Parabéns por mais uma importante matéria sobre as " Artes Visuais" na Bahia, e principalmente por fazer com que o homenageado se torne mais conhecido na nossa terra, quiçá, fora dela. Foi um prazer e também fácil encontrar o Mestre Duda, com as pistas dadas pelo professor Sibyne, Duda é quase meu vizinho. Conte com a minha colaboração sempre que estiver ao meu alcance.

    ResponderExcluir
  3. Antonio Carlos Da Rosa
    Excelente como sempre Reynivaldo!!

    ResponderExcluir
  4. Graça Gama
    Parabéns Reynivaldo. Linda reportagem!!!

    ResponderExcluir
  5. Edvaldo Gato
    Tenho em meu atelier: xilos, pinturas e cerâmicas do amigo DUDA !!!

    ResponderExcluir
  6. Edvaldo Esquivel
    Bela história de Vida e dedicação à Arte!

    ResponderExcluir
  7. Maria Das Graças Santana
    Interessante a dedicação dele no que gostava de fazer. É um don espíritual que Deus deu para as artes...

    ResponderExcluir
  8. Leonel R. Mattos
    ·
    . Parabéns compadre Reynivaldo Brito pelo resgate da nossa história

    ResponderExcluir
  9. Renato Costa Silva
    Parabéns meu amigo com suas lindas histórias

    ResponderExcluir
  10. Cibele Carvalho
    Tive oportunidade de conhecer essa pessoa maravilhosa!!!

    ResponderExcluir
  11. Selma Costa
    Duda, sempre presente, amável, admirado e querido por várias gerações de alunos e professores da Escola de Belas Artes, belo resgate,Reynivaldo.

    ResponderExcluir
  12. Christiane Reis
    Linda reportagem. Obrigado pela dedicacao.

    ResponderExcluir
  13. Eduardo Frederico
    Impossível não ler até o final.

    ResponderExcluir
  14. Márcia Cristina Silva Barros
    Duda um artista de marca maior! Mestre na Arte da gravuRA.

    ResponderExcluir
  15. Márcia Cristina Silva Barros
    Duda, parceiro de todos os alunos da EBA, em várias gerações! Um amor de pessoa um artista ímpar! Parabéns Mestre Reynivaldo Brito por este maravilhoso resgate de uma das figuras mais importantes da Escola de Belas Artes/UFBA!

    ResponderExcluir
  16. Teresinha Nogueira
    Parabéns ,vc sempre publica bonitas histórias.

    ResponderExcluir
  17. Ivo Neto Artes
    Parabéns amigo Reynivaldo Brito

    ResponderExcluir
  18. Marcelo Silva
    Meu caro Reynivaldo, no meu mestrado que fiz na EBA, eu mantinha contato com o meu colega e Professor da EBA, Julian Whobel, também professor de Gravura. Das oportunidades das visitas ao meu amigo e colega encontrava Duda, participando, das atividades acadêmicas. Tive o prazer de ser apresentado por meu amigo Julian. Agora fico feliz que se trata de um grande artista.

    ResponderExcluir
  19. Edicarlos Santana
    Parabéns seu Reinivaldo pelo seu trabalho

    ResponderExcluir
  20. Justino Marinho
    Beleza. Duda é uma pessoa querida. Fui amigo das irmãs dele. O pai dele foi um dos melhores alfaiate da Bahia e nos levava para passear num sinca presidente pela avenida Oceanica. Eles moravam numa bela casa ao lado associação atlética Banco do Brasil, que era na Barra

    ResponderExcluir