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Mestre Duda na prensa onde imprimia gravuras na EBA. |
Vou
falar hoje de um homem simples e libertário que abraçou a arte e a boêmia como
seu estilo de vida. Nunca quis trabalhar com horário fixo e até mesmo seu relacionamento
amoroso sempre foi livre. Embora um homem alto e corpulento sempre foi calmo,
introspectivo, de poucas palavras, temperamento afável e pronto para ajudar.
Atualmente está magro e fragilizado devido a idade e também porque era um
boêmio que bebeu e fumou muito. Me disse que teve uma grande paixão na sua
vida, e relutou em dizer o nome, mas que é uma professora que mora em São
Paulo. Confessou que fez algumas viagens para encontrá-la e que ela sempre
vinha aqui em Salvador pra ver a mãe, quando se encontravam. Mas, com a
pandemia perdeu completamente o contato. Calmo e meticuloso gostava de varar as
noites baianas em noitadas memoráveis com seus amigos de copo. Fumante
inveterado e mesmo com o peso da idade, já mostrando fragilidade e dificuldade
no andar não largou o maldito do cigarro. Estava sumido da Escola de Belas
Artes a qual frequentava quase diariamente há décadas. Foi a pandemia e alguns
probleminhas de saúde que lhe impediram de frequentar o local de sua preferência,
talvez até mais do que sua própria casa. Num rápido depoimento dado a
Revista Miolo em 2018 a diretora da EBA, Nanci Novaes confirma que "ele nunca
quis aceitar cargos de funcionário porque não queria ficar preso a horários”. |
Duda com pasta de xilos. |
Após
publicar uma matéria neste blog sobre a exposição de gravura que está
acontecendo na Galeria Cañizares, da Escola de Belas Artes da Ufba vi um
comentário do artista Leonel Mattos onde diz que o Duda não podia estar de fora.
Acontece que tem uma gravura e uma matriz de autoria do Duda na exposição, mas
me despertou o interesse em entrevistá-lo. Saí perguntando pela EBA e a muitos
outros artistas, e ninguém sabia o seu paradeiro. Sumira. Foi então que o
professor de gravura Evandro Sybine lembrou que deu algumas caronas ao Duda e
que ele descia nas imediações onde funciona um posto de gasolina, na entrada do
Calabar. Dias depois me encaminhou uns mapas que tirou do Google Maps. De posse
destes mapas lembrei que a artista plástica e restauradora Marluce Morais
Brito, mora por aquelas bandas no Jardim Apipema. Disposta que é, saiu a campo
e descobriu onde o Duda estava entocado e conseguiu o telefone da sua irmã
ainda viva a d. Janete, que foi muito solícita, e então marcamos para nos
encontrar na segunda-feira, dia 13 de março. Claro, que o encontro com o Mestre
Duda aconteceu na Sala de Gravura da EBA, seu lugar preferido.
SUA IMPORTÂNCIA
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Bela matriz de xilo do Duda. |
A
importância de Eduardo França dos Reis, o Mestre Duda, como é mais conhecido
para a História da Gravura Baiana é assegurada pela qualidade da sua obra e de
seu envolvimento com esta técnica artística desde a década de 60. Quando a
Escola de Belas Artes funcionava no amplo casarão da Rua 28 de Setembro, em
pleno Centro Histórico, de Salvador, o Mestre Duda já a frequentava com certa
regularidade. Assistiu muitos cursos livres e mesmo aulas de algumas
disciplinas que lhes interessavam como Desenho, Pintura, Cerâmica, Composição, mas o que
lhe conquistou foi a Gravura, especialmente a xilogravura. Teve inicialmente a
orientação do professor Henrique Oswald, depois Mário Cravo Jr., Hansen Bahia e
Lobianco. Sua infância foi no bairro da Barra, numa casa simples onde seu pai
um alfaiate conhecido que costurava para os homens abastados entre comerciantes
e políticos, inclusive costurou alguns ternos para o governador Antônio Carlos Magalhães.
Morava com a esposa e seus cinco filhos na Rua Cesar Zama, nas proximidades do
clube social Associação Atlética da Bahia. O alfaiate Gustavo Hipólito dos Reis
e d. Joana Digna dos Reis tiveram cinco filhos, e o Duda nasceu no dia 19 de
outubro de 1939, e foi na alfaiataria do pai que ainda criança reproduzia em pedaços de pano e também no
papel as estampas de tecidos e personagens dos gibis.
Na
sua dissertação de Mestrado o artista plástico Adriano Luiz Ramos de Castro, no
ano de 2010, escreveu na página 37 que "Duda é talvez, depois de Calasans
Neto, o nosso maior representante na gravura Moderna da Bahia. Ressalta que ele
produziu por mais de quatro décadas e que “uma de suas principais
características é adicionar às suas matrizes, todo e qualquer meio que possa
ser utilizado para dar texturas, como palitos de picolé, lixas, palhas, rendas
e outros materiais. Com isto ele tece uma trama labiríntica colorida, formando
um grande mosaico, que se tornou uma característica fundamental em sua obra.” A
temática que Duda utiliza é sempre enfocando os locais de suas andanças como o
Porto e Farol da Barra, Mercado Modelo, Elevador Lacerda e as festas populares.
Quando ia à São Paulo também fazia algumas gravuras inspiradas na temática
paulista.
AMOR
PELA XILOGRAVURA
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"Quem me Vio/Porto da Barra". |
Foi
atraído pela xilogravura no contato que teve na Escola de Belas Artes através o
artista plástico e professor Henrique Oswald que lhe deu as primeiras
orientações, e em seguida Mário Cravo e o grande gravador Hansen Bahia. Gosta
de produzir gravuras de tamanho médio, utilizando três cores básicas o verde,
vermelho e azul, trabalhando com duas matrizes. Também utiliza de lápis de cor
para fazer alguns trabalhos e pintar suas gravuras. Suas obras retratam a nossa
Salvador, as festas tradicionais e tem também obras abstratas que surgem da
estilização da paisagem e dos personagens populares baianos.
O
crítico de arte Eduardo Evangelista não concorda com os que insistem em afirmar
que o Duda seja um autodidata porque mesmo não sendo matriculado regularmente
na Escola de Belas Artes recebeu informações valiosas de grandes mestres da
gravura como Henrique Oswald, Mário Cravo Jr., Hansen Bahia e Lobianco, além da
convivência com outros professores e alunos. Foram noções de técnicas,
processos, composição, perspectiva e o equilíbrio na obra de arte que aprendeu.
Ele pode ter limitações em discorrer teoricamente sobre assuntos técnicos e
estéticos, mas é um mestre na execução, no fazer.
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Pasta com as xilos destruídas pelos cupins. |
Também
o professor da EBA, Herbert Magalhães, já falecido, escreveu num pequeno artigo
no jornal A Tarde em fevereiro de 1991 destacando a sua preferência por
gravuras pequenas e médias. Registrou que Duda lhe disse "Não me dou bem
com gravuras grandes". E que as gravuras abstratas são feitas baseadas nas
figuras que ele vivencia e procura simplificar.
Já
participou de várias exposições coletivas e individuais inclusive da Primeira Bienal Nacional de Artes
Plásticas, que foi realizada em Salvador, no Convento do Carmo. Numa mostra no
Ebec, na Pituba, em dezembro de 2006, juntamente com outros artistas expôs suas
matrizes de xilogravuras. O seu sonho foi expresso algumas vezes quando
entrevistado que era sobreviver da própria arte que abraçou para toda sua vida. Mas, a situação econômica depois que seus pais falecerem sempre limitou sua vida. Por isto escolheu gravuras pequenas e médias, e também usar papel canson de fabricação nacional e até mesmo na sua de vida boêmio a cachaça por ser barata.
BOÊMIA E POUCA GRANA
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Duda fumando na EBA. |
Disse ter saudades do tempo em que era um boêmio
contumaz pelas ruas e bares de Salvador. Como não tinha dinheiro suficiente
para consumir bebidas caras e até mesmo cerveja "sempre bebia cachaça por ser
mais em conta" . E em suas andanças pelos bares da vida conheceu o cantor e
compositor Raul Seixas que era parceiro de copo. Relembrou que Raul gostava de
frequentar a Cantina do Porto e que um dia chegou a encontrá-lo deitado no chão
completamente embriagado. Lembrou que outra vez estava conversando com um
engraxate que tinha sua cadeira ali no Porto da Barra e mostrou-lhe o Raul
Seixas com uma namorada na balaustrada. O engraxate duvidou e ele foi até o
Raul Seixas que lhe deu uma grana. Comprou uma garrafa de cachaça e fez o engraxate
beber uma dose caprichada da branquinha, quase o copo cheio! O engraxate
teimoso, também gostava de beber.
Perguntei
se era verdade uma história que contam que teria encontrado com o artista
plástico Edson da Luz que estava em companhia de um crítico famoso, (não lembra
o nome), nas imediações do Elevador Lacerda, e o colega baiano lhe pediu que
mostrasse suas gravuras. Ele tirou do bolso uma gravura feita em tecido, toda
amassada e apresentou aos dois. O Duda disse ser verdade, só que isto
aconteceu em São Paulo, e que tinha saído com algumas gravuras, mas vendeu por
onde passou e gastou o dinheiro todo com bebidas. Naquela hora vinha da farra
que fizera durante toda a noite. Sua presença em São Paulo foi porque ele
acompanhou uma caravana de professores e alunos que foram de ônibus para a
capital paulista com o objetivo de visitar uma das edições da Bienal
Internacional de São Paulo.
PRESERVAÇÃO DAS GRAVURAS
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Esta xilo estava entre as destruídas pelos cupins. |
O Mestre
Duda sempre manifestou certa preocupação em preservar suas obras de arte por ter consciência de que o suporte de papel tem certa fragilidade, especialmente
na Bahia onde a umidade é grande devido à proximidade do mar. Por isto guarda
suas gravuras em pastas cobertas de plástico, em envelopes de papel. Porém,
neste nosso encontro teve uma surpresa desagradável. Ao abrir um armário de aço
onde guarda suas gravuras, na EBA, retirou uma pasta de plástico de cor azul. Ali tinha
guardado dezenas de gravuras e me entregou para abri-la. Quando abri todas as
gravuras estavam quase totalmente comidas pelos cupins que fervilhavam, e de
repente ainda saiu da pasta um piolho de cobra, com cerca de cinco centímetros,
que tive de pisotear até matar. Eram tantos cupins que não dava para deixar a
pasta por perto e tivemos que jogar no lixo. Ele ficou em silêncio por um breve
período e depois se refez, Pegou outras pastas que continham mais gravuras. O pior é que Mestre Duda não tem mais a maioria das matrizes das
gravuras destruídas pelos cupins, porque ao terminar de tirar as cópias ele
costuma pintá-las e vende-las. Portanto, será difícil recuperá-las para fazer
novas impressões.
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Duda ladeado pelo professor Sybine e eu. |
Também o
Duda é um exímio impressor. De sua convivência com professores e alunos e
mesmo
ao imprimir suas gravuras tornou-se um impressor respeitado e requisitado.
Professores e alunos sempre contam com sua boa vontade para imprimir suas obras.
Tive a oportunidade de ver um tríptico impresso em lona de autoria da artista
Terezinha Dumet que mostra a habilidade do impressor que o imprimiu .
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Xilo "Carrregador de Tijolos". |
Outra
curiosidade do Duda é que ele não enumera cada uma das cópias de suas gravuras.
Assina Duda, escreve série 0/50, o ano, xilo, coloca o nome da gravura, quase
sempre de um monumento importante, estórias de gente de nossa Bahia como de
vendedores ambulantes, carregadores, baianas do acarajé, pescadores, etc.
Praticamente em algumas xilogravuras ele conta pequenas estórias desta gente.
Duda
lembrou que quando era mais jovem ia nos finais de semana para a casa de
Henrique Oswald o qual naquela época tinha uma prensa bem melhor que da Escola
de Belas Artes e lá imprimia suas gravuras. "Às vezes passava os finais de
semana por lá. ". Quando indagado onde ficava a casa do professor
respondeu que era "para as bandas da Boca do Rio", não soube precisar
o bairro e nem a rua.
Duda é um exemplo de vida simples, boa e de bem com o Universo.
ResponderExcluirMarluce Maria Morais Brito
ResponderExcluirOi primo, que trabalho maravilhoso essa,sua homenagem tão merecida ao nosso querido Mestre Duda que sempre foi amigo de todos nós quando alunos da Escola de Belas Artes! Passava o dia inteiro ali na sala de gravura, criandos suas "xilo" e nos ajudando. Parabéns por mais uma importante matéria sobre as " Artes Visuais" na Bahia, e principalmente por fazer com que o homenageado se torne mais conhecido na nossa terra, quiçá, fora dela. Foi um prazer e também fácil encontrar o Mestre Duda, com as pistas dadas pelo professor Sibyne, Duda é quase meu vizinho. Conte com a minha colaboração sempre que estiver ao meu alcance.
Antonio Carlos Da Rosa
ResponderExcluirExcelente como sempre Reynivaldo!!
Graça Gama
ResponderExcluirParabéns Reynivaldo. Linda reportagem!!!
Iara Brito
ResponderExcluirLinda homenagem meu irmão.
Edvaldo Gato
ResponderExcluirTenho em meu atelier: xilos, pinturas e cerâmicas do amigo DUDA !!!
Edvaldo Esquivel
ResponderExcluirBela história de Vida e dedicação à Arte!
Maria Das Graças Santana
ResponderExcluirInteressante a dedicação dele no que gostava de fazer. É um don espíritual que Deus deu para as artes...
Leonel R. Mattos
ResponderExcluir·
. Parabéns compadre Reynivaldo Brito pelo resgate da nossa história
Renato Costa Silva
ResponderExcluirParabéns meu amigo com suas lindas histórias
Cibele Carvalho
ResponderExcluirTive oportunidade de conhecer essa pessoa maravilhosa!!!
João Almeida
ResponderExcluirYeah !!!
Selma Costa
ResponderExcluirDuda, sempre presente, amável, admirado e querido por várias gerações de alunos e professores da Escola de Belas Artes, belo resgate,Reynivaldo.
Christiane Reis
ResponderExcluirLinda reportagem. Obrigado pela dedicacao.
Eduardo Frederico
ResponderExcluirImpossível não ler até o final.
Márcia Cristina Silva Barros
ResponderExcluirDuda um artista de marca maior! Mestre na Arte da gravuRA.
Márcia Cristina Silva Barros
ResponderExcluirDuda, parceiro de todos os alunos da EBA, em várias gerações! Um amor de pessoa um artista ímpar! Parabéns Mestre Reynivaldo Brito por este maravilhoso resgate de uma das figuras mais importantes da Escola de Belas Artes/UFBA!
Teresinha Nogueira
ResponderExcluirParabéns ,vc sempre publica bonitas histórias.
Eliana Costa
ResponderExcluirMaravilhoso Duda Reis.
Ivo Neto Artes
ResponderExcluirParabéns amigo Reynivaldo Brito
Marcelo Silva
ResponderExcluirMeu caro Reynivaldo, no meu mestrado que fiz na EBA, eu mantinha contato com o meu colega e Professor da EBA, Julian Whobel, também professor de Gravura. Das oportunidades das visitas ao meu amigo e colega encontrava Duda, participando, das atividades acadêmicas. Tive o prazer de ser apresentado por meu amigo Julian. Agora fico feliz que se trata de um grande artista.
Edicarlos Santana
ResponderExcluirParabéns seu Reinivaldo pelo seu trabalho
Manoel Lima Matos Lima Matos
ResponderExcluirShow
Justino Marinho
ResponderExcluirBeleza. Duda é uma pessoa querida. Fui amigo das irmãs dele. O pai dele foi um dos melhores alfaiate da Bahia e nos levava para passear num sinca presidente pela avenida Oceanica. Eles moravam numa bela casa ao lado associação atlética Banco do Brasil, que era na Barra