quarta-feira, 21 de novembro de 2012

UM CRUZADO NA ARTE - 03 DE MARÇO DE 1986

JORNAL A TARDE, SALVADOR, 03 DE MARÇO DE 1986.

                     UM CRUZADO NA ARTE

Iniciamos a semana com as profundas mudanças na economia. Como tudo que acontece neste País, todos foram pegados de surpresa pelo novo pacote. Em matéria de pacote estamos bem servidos. Cada ministro tem o seu e os envia para nós consumidores sem nunca manifestarmos o direito, se a gente quer recebê-los ou não. Os pacotes nos dão impostos. Afinal, o Brasil é mestre nesta coisa de impor. Durante 20 anos uma geração inteira não sabia de nada que não fosse vindo de cima para baixo. Vá ver até que já está digerindo bem este pacote sem maiores problemas.
E o pessoal ligado ao mercado de arte? Os preços das tintas, dos pincéis, das telas e de outros produtos consumidos por aqueles que vivem da criação? Como ficam os preços das obras, a maioria completamente inacessível à classe média e muito mais ainda a classe de salários mais reduzidos? Na verdade os preços dos produtos utilizados pelos artistas boa parte é importada, portanto, estão livres de congelamento, embora o cruzado, este dólar verde e amarelo, tenha a pretensão de enfrentar o dólar verde e branco do Tio Sam. Não acredito neste enfrentamento, aliás, na capacidade de enfrentamento deste filho de Jeca Tatu. O verdinho tem raízes em todo o mundo e o verde e amarelo nunca saiu daqui. É uma planta muito tenra e frágil. O vitorioso a gente já conhece!
Mas, voltando ao mercado de arte, acredito que sofrerá conseqüências boas, com as medidas deste pacote. Arte é um bom investimento, embora o preço de uma obra seja difícil de agente mensurar, porque além dos elementos técnicos entram ingredientes muito subjetivos no jogo.
Acredito que é hora das galerias, dos marchands e dos artistas também reciclarem os seus preços para acompanhar estas mudanças. É preciso que as galerias, marchands e artistas verifiquem melhor que a obra de arte, na medida do possível, não deve estar longe ao alcance das mãos pelo menos do consumidor de classe média. A gente sabe que quadros de artistas consagrados nacionalmente ou internacionalmente só estão ao alcance de instituições (museus etc.) e dos milionários.
Porém, convenhamos, tenho observado nas exposições que o artista nem começou e já supervaloriza o seu quadro. Resultado, não vende ou vende o mínimo possível e inflaciona, porque outros tendem a segui-lo. Aí ganham um caminho sem fim em busca de superpreços.
É preciso trabalhar muito, vender muito a preços razoáveis, porque assim está ajudando a cultura e torna o seu nome cada vez mais conhecido, o que facilita novos negócios.
Faço este comentário porque a mercadoria, obra de arte, embora seja um produto nobre, não está incluída pelos economistas na lista dos “de primeira necessidade”. Portanto, outros produtos são prioritários, dentro desta visão pragmática o que fortalece o argumento da reciclagem dos preços. É um assunto para se discutir e polemizar. Acho que é hora de abrir as porás das galerias e dos ateliers para esta classe média sofrida deste Brasil do cruzado.
É preciso acabar com a falsa idéia que o bom artista é aquele que vende mais caro. Esta medida está completamente inserida na filosofia do capitalismo selvagem, que tanto condenamos, porém, fora dos cânones da sensibilidade de um artista. Sabemos que precisamos sobreviver com dignidade. Sabemos por outro lado, que é preciso eliminar falsos valores para alcançarmos os reais.

   GATO REVELA A POBREZA E FEIÚRA DA DECORAÇÃO

Tinha decidido que não falaria de decoração. Ainda mais que o Carnaval já passou, e a gente que gosta da folia está pensando no próximo. Porém, recebo uma carta de Edvaldo Gato tentando esclarecer alguns pontos sobre a triste decoração, que por sinal ainda está aí nas ruas para o povo comprovar a sua pobreza. A hegemonia do grupo da Escola de Belas Artes que há anos vem monopolizando a decoração, tem prejudicado a Bahia, porque não criou nada significativo. Mera repetição de formas! Apenas uma ou outra figurinha diferente! O resto é tudo igual. Que falta de imaginação!
Que pobreza, se a gente imagina que são artistas plásticos responsáveis pela decoração. Mas, deixo “os esclarecimentos” de Gato, que acho que não tem força. Defendo o seu direito de tentar “esclarecer”. Vejamos:

A DECORAÇÃO DE CARNAVAL DA CIDADE DO SALVADOR


Infelizmente a maioria das críticas endereçadas a decoração deste ano não reflete todos os fatos necessários a uma opinião analítica e desapaixonada. E, como acreditamos não haver nenhuma intenção malévola na insistência de algumas notas veiculadas e que o grande público merece todas as informações para melhor estruturar a sua opinião, desejamos acrescentar o seguinte:
1.º) A concorrência realizada pela Prefeitura (Edital de Concorrência Pública nº 01/85) só determinou 16 dias para a realização do projeto, tempo absolutamente irrisório e que exigiu muito esforço de nossa equipe. Houve jornal que publicou que a única diferença da decoração deste não para com a do ano passado foi o fato da deste ano ter sido escolhida sem concorrência pública.
2.º) O Edital de Concorrência é absurdo do ponto de vista técnico, carecendo de um estudo mais cuidadoso, principalmente em relação à infra-estrutura da decoração do Carnaval.
3.º) Em virtude do grande atraso da concorrência e dos acertos burocráticos da prefeitura, só restaram duas semanas para a execução de quinhentas e sessenta peças (560) e uma (1) semana para a montagem. Isto resultou em mais despesas e num esforço sobre-humano dos responsáveis pela decoração.
4.º) mesmo apenas com três (3) semanas para a execução e montagem de toda a decoração, a verba inicial só foi liberada 10 dias após o seu início, o que onerou mais ainda o preço das compras de material e apertou mais ainda o plano geral de execução.
5.º) As verbas destinadas à decoração carnavalesca da Cidade do Salvador são irrelevantes, não refletem a importância do seu Carnaval, bastando considerar a inflação reinante e comprar com o que se gasta (investe) no Sul do País, não só nos clubes e nas ruas mas principalmente nas escolas de samba.
6º) Mesmo com uma pequena verba de dois bilhões e trezentos e setenta e oito milhões (2.378.000,000) ainda tivemos um desconto de duzentos e noventa milhões para o pagamento do Imposto de Renda. O orçamento apresentado não considerou o Imposto de Renda, pois o mesmo deveria ser pago pelo contratante.
Acresce que ainda tivemos de realizar um acordo com a Prefeitura no sentido de que a decoração dos bairros, em número de doze (12) ficasse por nossa conta. Só com este compromisso foram gastos mais de duzentos (200) milhões, reduzindo mais ainda a verba inicial
7.º) Nos regimes democráticos a concorrência pública é um instrumento moralizador do dinheiro do povo. Não se ganha concorrência com fórmulas. Apenas pelo nosso esforço e experiência correspondemos a todos os requisitos exigidos pelo Edital da Concorrência da prefeitura, lamentando a ausência de outros artistas concorrentes, principalmente daqueles que sempre criticam os resultados dos concursos públicos (raros) existentes na Cidade do Salvador)
8º) Com muito pouco dinheiro e muito pouco tempo optamos por uma estrutura simples e prática, inspirados em experiências anteriores, mas sem ser uma simples reprodução, como bem comprova uma de nossas estruturas cuja imagem tem sido utilizada como marca e logotipo do Carnaval de 1986 pelo Jornal A Tarde.
9.º) Todas as peças aéreas foram executadas dentro das normas exigida pela prefeitura, mais que os trios elétricos disputam entre si uma altura cada vez maior, contrariando as medidas oficiais.
10.º) O tema é uma exigência do Edital de Concorrência.
Pretendeu-se apenas criar algumas alegorias ligadas ao verão baiano e a alguns aspectos do nosso folclore. As soluções são artísticas e não literárias. Publicou-se inclusive que em lugar de Dorival Caymmi deveríamos ter homenageado os Menudos porque são mais conhecidos dos baianos. È evidente que tal blasfêmia não teve o apoio de nenhum jornal ou mesmo de qualquer pessoa de bom senso.
11.º) Quanto a ferocidade de algumas críticas (houve quem qualificasse a decoração, ou parte dela, de horripilante), esperamos que ela se entenda com a mesma coragem e intencionalidade pretendida às constantes aparições de objetos urbanos, esculturas e  murais públicos dentro da nossa cidade, de indiscutível mau gosto e sempre por encomenda de nossas eternas oligarquias políticas e feudais”.

   OS DESENHOS DE DI CAVALCANTI

Pássaro de Lata, desenho de Di Cavalcanti

Após a revalorização para as novas gerações da pintura de DI Cavalcanti entre 1936 e 1945, promovida no Rio de Janeiro pela exibição de parte da coleção Roberto Marinho (exposta no Museu da Casa Brasileira, em São Paulo), outro ensejo de compreensão e aprofundamento da posição  de Di na arte brasileira ocorre neste momento com a realização da mostra Desenhos de Di Cavalcanti na Coleção do Mac, aberta no campus a USP, acompanhada de bela edição do livro com o mesmo título, publicado com o apoio do CNEC e outras entidades. O projeto geral de ambos é de Aracy Amaral, diretora do Museu, que para a pesquisa básica contou com Áurea P. da Silva, Ainda C. Cordeiro, F. Lemos e Sonia Salztein Golberg. A impressão é de Raízes, com planejamento gráfico de Emanuel Araújo e muitas reproduções são coloridas. Um dos mais significativos textos nele publicados é de Luiz C. Daher, o saudoso e competente estudioso da obras de Flávio de Carvalho.
DI pintor, entre 1936 e início dos 40, obteve uma força cromática com substâncias mais rica e refinada de pigmentos e intensidade de relacionamento de cores, tons e ás vezes linhas, nos quais a sobrevivência de influxos de Braque e, menos, de Picasso bem diversos da superficialidade que marcou a sua fase final. Fui amigo dele e lembro-me da visita que lhe fiz em 1949, em São Paulo, no apartamento dele e de Noêmia Mourão, na Praça da República. Meu tio Frederico possuíra, entre outras obras dele, a Cinco Moças de Guaratinguetá, que doou ao MASP (no início deste Museu que, segundo texto de Assis Chateaubriand, no Catálogo do Acervo do MASP, 1963, Pág. V teve nele um dos idealizadores) Tela que é datada de 1930, mas em cronologia no presente livro do MAC está referida como sendo de 1926, talvez devido à errônea informação do catálogo da Retrospectiva de Di no MAM-SP de 1971. A data real está na própria obra. Di, em 1949, recordou-me ainda que uma das primeiras encomendas que recebeu de ilustrações para livro foi feita por meu pai, por volta de 1925, originais extraviados até hoje, sem serem publicados.
Recorde-se que nesse ano  a Editora Brasileira Lux lançou o Bebé de Tarlatana Rosa, de João do Rio, com ilustrações de Di Cavalcanti.
Vinicius observando as mulatas

A importância de Di realçada pelos atuais livros e exposição. Araci estuda bem as “Três décadas, essenciais no desenho de Di Cavalcanti”. Creio que o texto de Daher, “Desenho Expressionista”, que foi feito para mostra no mesmo museu em 1983, pelas idéias gerais que formula  poderia ter saído logo após o de Aracy, no livro. Trata-se de uma visada contemporânea sobre obras de Di forçosamente diferente nisso dos vários textos de época reproduzidos no volume, todos de interesse, mas em situação diversa. Paradoxalmente a “Introdução aos Desenhos” após vários estudos, entre eles o de Lisberth Rebolo Gonçalves e a “Tentativa de Bibliografia”, título modesto de bem feito trabalho de Áurea P. da Silva.
O desenho de Di é importante e o artista teve razão em doar ao primeiro MAM (atual MAC-USP) essa bela coleção.
O livro facilitará os próximos estudos sobre o estilo e a significação dessa obra, suas variantes e transformações, em si e no contexto da arte brasileira, nessas “três décadas essenciais”. Parabéns mais uma vez ao Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (Mário Barata).

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