JORNAL A TARDE SALVADOR, 16 DE
ABRIL DE 1984
O MAR DA BAHIA NA OBRA DO MARINHEIRO
Só
um velho marinheiro é capaz de entender os mistérios de mar, em toda sua
grandiosidade. E, ninguém melhor que um velho marinheiro pintor para retratar a
sua beleza e magia. Especialmente, quando se trata do mar da Bahia, com seu
azul intenso e suas ondas suaves a beijar a areia branca das praias da Barra,
Piatã e Itapuã. Mas, o fascínio do marinheiro pintor não ficou limitado apenas
ao mar. Ele viajou pelas águas escurecidas e misteriosas da lagoa do Abaeté,
retratando as lavadeiras que enfeitam suas margens com as roupas coloridas. E,
os coqueiros, que surgem como marinheiros vigilantes, revelando com a postura
de sua copa se o vento está soprando forte, indicando sinal de perigo, ou se é
tempo de calmaria e de lançar a jangada no mar. Esta intimidade com as coisas,
do mar e da Lagoa de Abaeté nos são agora apresentadas numa importante
exposição com 34 telas de autoria do marinheiro José Pancetti, pintadas ao
longo da década de 50. A
exposição está sendo realizada no Museu de Arte Moderna da Bahia e todas as
telas foram adquiridas por Clemente Mariani, e hoje, integram o acervo do Banco
da Bahia investimentos S/A (BBI)
Esta
coleção só era conhecida pelo que visitavam as salas de diretoria do Banco da
Bahia Investimentos em Salvador, no Rio e em São Paulo , e agora o
grande público tem oportunidade de conhecê-la graças aos dirigentes desta
instituição financeira. Além, disto o BBI editou um álbum de excelente gráfica,
dos 34 quadros, com projeto do artista Wesley DukeLee.
PANCETTI
Filho
de imigrantes italianos José Pancetti nasceu em 1902, na cidade Campinas. Aos
11 anos de idade foi para a Itália morar com seus avós. Entrou para a Marinha
Mercante italiana, onde ficou durante um ano. Retornou ao Brasil em 1920 e
alistou-se, em nossa
Marinha de Guerra, dois anos depois.
Aqui
foi “saudado”, com um artigo do crítico Sérgio Milliet falando de suas
influências adquiridas em museus europeus e para surpresa, o marinheiro
Pancetti respondeu através de uma carta que “o único que visitei foi o de Arte
Contemporânea em Lisboa, e isto porque o navio fundeou no porto de uma capital
onde havia museus”.
Era
assim Giuseppe Gianinni Pancetti ou José Pancetti, este homem que teve momentos
de coragem, como por exemplo, em 1944 quando classificou a atitude de alguns
reacionários em Belo
Horizonte que depredaram quadros dos modernistas como de “um ato
de inveja desses que, desesperados com a queda do fascismo, navalham nossas
telas”. Pancetti aproximou-se dos comunistas. Era muito amigo de Niemayer, mas
não deixou de criticar o hotel projetado para Ouro Preto pelo arquiteto, e até
hoje criticado por destoar completamente daquele conjunto arquitetônico
colonial.
Tinha
consciência de que sua obra era importante e que permaneceria depois de sua
morte, e uma prova insofismável disto é que chegou a desenhar uma figura dentro
de um caixão de defunto, levado por quatro marchands, antevendo assim a
exploração comercial de suas telas. E, certamente esta visão é hoje uma
realidade, porque suas telas são muito valiosas.
Esta
ano estamos comemorando os oitenta e dois anos de nascimento deste pintor, que
amou a Bahia e os 26 anos de sua morte.
Esta
exploração organizada no Museu de Arte da Bahia na vitória, tão bem dirigido
por Luís jasmim, ficará aberta ao público até o próximo 06 de maio, de segunda
a domingo, das 14 às 18 horas. Esteve presente à inauguração a filha do pintor
Ilma Pancetti e vários artistas baianos.
APAIXONADO
Numa
matéria publicada em Manchete, o crítico Flávio de Aquino conta um fato curioso
que presenciou. Tendo conseguido um pequeno óleo do artista retratando o
Passeio Público, no Rio de Janeiro, foi até seu apartamento tentando trocá-lo
por uma obra mais atual. Lá chegando, encontrou-o em frente a uma garrafa de
uísque consumida pela metade. Foi bem recebido e o pintou se prontificou a
trocar por outro pintado em Cabo Frio. Na
frente da tela, havia um trigal em cores vivas e uma estrada; no verso, o nome
da musa com um coração sangrando e as palavras: “Hoje é 1.º de outubro de 1955.
Vou votar em JK”.
A
paisagem era muito grande e ricamente emoldurada. Flávio ponderou que a troca
estava lhe favorecendo. Ele não gostou; e disse: “Você não está gostando é da
minha pintura”. Tomou-lhe o quadro, arrancou a moldura e jogou-a pela janela.
Quando ia jogar a tela foi contido por Flávio. Ainda furioso, foi ao quarto,
abriu as gavetas jogando pela janela as roupas da sua amada.
Eram
calcinhas, soutiens que “voaram”, e muitas pessoas foram atraídas por aquela
cena.
Uma
reação do artista diante do amor não correspondido. Seu desespero era tanto que
atiçara também pela janela a única chave do apartamento. Vieram os amigos e
beberam uísque pela janelinha da porta principal do apartamento. Eles foram
buscar um serralheiro, e outra chave foi providenciada. Pancetti continuava
chamando por sua Stela, e esbravejava contra o mar. Era o mar que se espraiava
e se descortinava da janela do seu apartamento na Praia do Leme. Assim, o mar
que ele tanto amou durante sua vida foi xingado.
Uma
reação de desespero de um amante abandonado, e só quem foi perdidamente
apaixonado por alguém e não foi correspondido, é capaz de compreender a
extensão da sua dor naqueles momentos.
O
Flávio de Aquino saiu com os demais amigos, deixando-o com ás lágrimas a
escorrer por sua face rude, mas que demonstrava um coração frágil, capaz de
partir-se em pedaços. Foi
este sentimento que Pancetti soube transportar poeticamente para seus poemas e
principalmente para suas paisagens.
Pancetti
não é apenas um dos maiores de nossos paisagistas, mas principalmente o que
melhor soube transportar para a tela o mar. E suas telas são testemunho de um
tempo que já passou, onde a calmaria de nossas praias permitia que
marinheiro-pintor permanecesse horas e horas sentado num banquinho captando os
detalhes para fazer suas composições sem ser incomodado. E revelam também as
mudanças verificadas em sua obra depois do contato diário com as luzes e as
cores vibrantes do litoral baiano. Sua presença na Bahia, e conseqüentemente, o
enriquecimento de sua obra com a introdução de luzes e cores vibrantes deu-se
por volta de 1948, quando aqui aportou a convite de Odorico Tavares, um grande
incentivador da arte. Mas, foi em 1950, ao receber a Medalha de Ouro no Salão
Nacional de Belas Artes, que ele veio e ficou. Porém, como todo marinheiro que
não gosta de demorar muito no porto, ele fez ao chegar, algumas observações que
provocaram desagrados. Confidenciou a amigos que não passaria por aqui mais que
oito dias. Mas, o porto baiano, as praias com suas cores tropicais e a magia da
Lagoa de Abaeté souberam cativar o coração deste viajante incansável. Pancetti
ficou. Um ano e meio depois já se confessava um seduzido. Homem viajante e de
tantas paixões estava apaixonado, e assim disse a Odorico Tavares, em dezembro
de 1951. “Não saio mais da Bahia”. Suas amizades iam se sedimentando, seu amor
crescendo de intensidade. Ele reconhece seu amor dizendo que “ano e meio nesta
terra e as raízes crescem dia a dia. Vim para dois meses, se tanto, e o
resultado é este. Estou aqui e vou ficando”.
O
mar de Itapuã foi mais forte, aliado à magia de Abaeté. Foi assim que a partir
de 1952 ele vai morar em Itapuã, e posteriormente numa pequena casa próxima a
Lagoa de Abaeté, de onde só saiu muito doente para Campos do Jordão, e depois
para o Rio de Janeiro, falecendo no Hospital Central da Marinha, em 10 de
fevereiro de 1958.
FORAM
SETE ANOS
Foram sete anos de Bahia. Tempo suficiente
para se viver um grande amor. Foi muito importante enquanto pôde durar este
amor entre o pintor e a sua musa. Além das belas marinhas surgiram excelentes
retratos, naturezas-mortas e paisagens, frutos deste amor que vieram
engrandecer a arte brasileira.
Quantas
vezes ficou horas e horas diante do espelho retratando seu rosto ossudo, com
olhos ferozes e outros detalhes que revelavam ser um marinheiro destemido, que
cansado de enfrentar tanto mar bravio aportou, sem querer, numa “ilha” de paz
rodeada de areias brancas beijadas por ondas mansas. Esbravejou que ficaria no
máximo oito dias. E ficou até o momento que sua saúde permitiu. Desta vivência
surgiram não apenas suas telas, mas também poemas, e no diário que escreveu, em
seus últimos dias, e no costume de marinheiro de sempre dar notícias em cada
porto, resultou uma farta correspondência que nunca interrompeu.