quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

A CUMPLICIDADE DOS ILUSTRADORES DE JORGE - 21 de maio de 2010

 O escritor Jorge Amado é um líder nato. Conversando com os ilustradores que a Galeria Anarte reúne na exposição “Universo Amado”, Carybé, Calasans Neto, Carlos Bastos, Floriano Teixeira, Jenner Augusto e Mário Cravo, que será aberta hoje, a partir das 19H30min, podemos sentir o quanto o escritor oitentão representou e representa para eles e, consequentemente, para a arte baiana. A maioria está em Salvador graças a este poder aglutinador de talentos de Jorge e do culto de sua amizade. Ele sabe como ninguém cuidar dos seus liderados, sempre dando um aconselhamento. Hoje, evidente que isto é coisa rara, já que seus amigos estão com as cabeças embranquecidas e carregam pelo tempo a experiência vivida em muitos anos de trabalho. Porém, eles guardam um respeito fraternal pela figura de Jorge. Cultuam suas brincadeiras, inquietações e preferências. Ao escrever um novo livro ele sempre detalha os personagens, para que o ilustrador traduza realmente o que imaginou, mas cabe sempre ao artista materializar os personagens do universo amadiano. Assim, teremos oportunidade de ver Gabriela, Tieta, Dona Flor e outros personagens deste mundo mágico criado por este homem, hoje, reverenciado em todo o mundo por sua obra de romancista universal.

Floriano Teixeira está morando em Salvador graças a Jorge Amado. É o ilustrador que em maior número de livros de Jorge está presente. Fez as ilustrações de Dona Flor e seus Dois Maridos, Menino Grapiúna, Milagre dos Pássaros e Morte de Quincas Berro D’água, Tocaia Grande, Farda e do Farda e Fardão, Camisola de Dormir (inclusive uma edição de luxo para Portugal) . Lembra Floriano que “Jorge é responsável por estar morando aqui e por uma virada completa na minha vida. Era um pintor de abstratos e foi ele quem orientou e me incentivou para voltar à figuração. Em 1966, vim como minha família do Ceará para a Bahia.

Aqui não conhecia ninguém, e ele me deu Dona Flor e Seus Dois Maridos para ilustrar. Isto abriu as portas para mim, tornei-me conhecido em todo o país e até mesmo fora daqui. Foi uma abertura de portas. Mas esta influência de Jorge na minha obra veio muito antes, quando li Capitães de Areia. E, esta convivência com ele é tão importante, é tão fraterna que a gente não tem mesmo palavras para explicar.” Não é preciso, basta a gente olhar a perfeita identidade da obra e dos personagens de Jorge com as ilustrações que Floriano fez , para sentir a cumplicidade e a parceria.

 Já Mário está num ritmo febril de trabalho. Não pára de esculpir em pedra-sabão suas cabeças de Ogum, Exu e belas Iemanjá. Mostra-se inquieto e sem paciência para encontros e entrevistas. Mas, ele tem direito. Já talhou a sua própria existência e obras para a posteridade, sua figura física e seu jeito de ser combinam com as criaturas que esculpe com maestria, e ser até estranho que ainda tivesse tempo para outras ocupações terrenas...

Outro ilustrador da obra de Jorge é o sergipano Jenner Augusto. De temperamento quieto, caladão e de uma finura no trato à toda prova.É desconfiado que nem índio, ou mesmo caboclo. Fica espiando o que a gente está fazendo e ouvindo as conversas. Não interrompe e nem mesmo dá uma penada. É preciso provocá–lo, do contrário, entra e sai calado. Só vamos ouvir a sua voz quando se despedir. Mas Jenner estava também presente ao bate-papo com esta gente difícil de ser reunida.Ele falou da influência de Jorge na sua vida e obra. Em 1954 morava no Rio de Janeiro e também embarcava na onda mundial do abstracionismo. Num encontro que teve com Jorge Amado , após retornar da Europa, acabou com um conflito que Jenner estava enfrentando. “Eu não estava satisfeito com o que fazia e o aconselhamento de Jorge foi uma luz.Voltei ao figurativo e esta amizade tem vencido décadas”.

Jenner tinha uma vontade acalentada de ilustrar Capitães de Areia, e agora nesta exposição comemorativa dos 80 anos de Jorge realizou o seu sonho fazendo suas obras inspiradas nos meninos de rua.

Mas, a liderança de Jorge conseguindo juntar esta plêiade de bons artistas está presente não apenas nas páginas de seus livros, mas também nos catálogos das suas principais exposições. Eles ostentam as apreciações, sempre poéticas e abalizadas de um homem que também entende e gosta de artes plásticas. Sua casa é sempre ornamentada de muitas obras de seus ilustradores. Jenner é o ilustrador de Tenda dos Milagres, onde conseguiu captar a alma dos personagens, ricos elementos fundamentais que formam o que podemos chamar cultura baiana, tão representada pelo universo dos personagens criados pelo escritor.

O artista Calazans Neto sempre foi ligado ao livro, participando, inclusive, de movimentos literários com outros intelectuais baianos. Existe uma cumplicidade entre o livro e a gravura, uma ligação forte, bastando lembrar as inúmeras ilustrações utilizadas em livros de poesias com gravuras. Uma oportunidade ímpar do artista divulgar o seu trabalho. Um livro de Jorge Amado com 150 mil exemplares em diante passa pelas mãos de cinco ou dez vezes mais de leitores, o que implica num número considerável de pessoas que vai ter oportunidade e ver as gravuras de Calazans neto, além da vantagem da perpetuação do livro. E Jorge Amado, não sendo poeta, mas romancista, foi talvez um dos primeiros no Brasil a utilizar a gravura para ilustrar suas obras, e Cala, como é mais conhecido, deu forma a Tereza Batista, Cansada de Guerra, evidente que seguindo a orientação do seu criador-mor. Jorge chega a detalhar como imagina o rosto, o corpo, aliás, por falar em corpo as suas personagens femininas sempre têm formas cheias, roliças, uma preferência pessoal que ele deixa escapar ao nosso conhecimento.

Lembra Calazans neto que a gravura está muito ligada principalmente a exilo, ao cordel. A primeira ilustração de Calazans para uma obra de Jorge Amado foi, portanto, com Tereza Batista Cansa de guerra em 1973.

Mostrando um contentamento quase juvenil, Calazans revela que a sua segunda oportunidade de ilustrar veio com Tieta do Agreste com uma peculiaridade, porque a personagem era uma pastora de cabras. “Ora, uma perfeita identificação porque já pastoreava minhas cabras pelas bandas de Itapuã e as cabras acompanharam meu trabalho durante um bom período. Caiu a sopa no mel. Isto foi em 1976. Jorge deu a alma a Tieta, e eu a materializei com as formas de minha arte. Fiz uma mulher saída do povo em Tereza Batista e com Tieta segui a mesma linha”. Para esta exposição do Universo de Jorge, o mestre Calá pegou as ilustrações dos livros e as transportou para a tela fazendo uma brincadeira com seu amigo fraternal colocando-o montado num belo cavalo com Tereza Batista na garupa. No seu jeito inconfundível e cativante, o artista deixou escapar uma frase que resume esta ligação com Jorge e seus ilustradores. “Jorge é o criador. As criaturas que ele cria são amadas por seus ilustradores”. Uma identificação perfeita deste homem que é um verdadeiro imã que atrai esta nata do que existe de mais significativo no segmento das artes plásticas em nossa Bahia.

Carlos Bastos revela, além da sensibilidade para com os artistas, o lado humano do escritor: “Tive uma fase onde fiquei quase paralítico e Jorge sempre foi uma presença constante, me confortando e ajudando no que pôde. Trabalhar para um livro dele é uma satisfação que não tenho palavras para descrever. Tivemos cerca de dois anos morando vizinhos e quase sempre ele mandava me chamar para conversar. Eram horas de muita conversa jogada fora. Depois, hordas de turistas começaram a perturbá-lo, muitos quase invadindo a sua intimidade, e ele teve que deixar a Pedra do Sal, para nossa tristeza”.

Ele ilustrou o livro Baía de Todos os Santos em 1977. Livro que cita este jornalista numa de suas páginas. Voltando a Carlos Bastos ele disse ainda que “Jorge foi sempre muito cuidadoso, passa detalhes de seus personagens e às vezes orienta como o desenho poderia ser feito. Isto não significa interferência, mas é fruto da convivência e de uma integração maior com seus ilustradores. São 125 desenhos retratando situações e personagens. Neste livro ele mostra toda sua capacidade criativa e conhecimento da arte de desenhar. Diria que Carlos Bastos é um dos mais representativos desenhistas deste país. Poucos conseguem com ligeiros traços traduzir a personalidade, os detalhes de um personagem, de um objeto ou paisagem.

Lembro um imponente painel que ornava a Assembleia Legislativa da Bahia, o qual retratava várias personalidades e gente da Bahia. Este painel foi destruído num incêndio, e até hoje Carlos Bastos lamenta o seu desaparecimento. Aliás, este artista já foi vítima de outros acidentes ou mesmo descaso , como aconteceu com os murais que pintou na antiga Boate Anjo Azul, que ficava no Cabeça, próxima ao Largo Dois de Julho, que foi ponto de encontro da intelectualidade baiana em determinado período. Além de ilustrar Baía de Todos os Santos, fez a capa de Tieta do Agreste. “Fiz quatro versões, confessa, e o Alfredo Machado, editor de Jorge, acabou escolhendo a que menos eu gostava.”

Sobre a sua presença nos livros de Jorge Amado, Carlos Bastos reconhece a importância e o que representou para ele. Lembra que logo após o lançamento surgiram convites para várias exposições, inclusive uma em Porto Alegre. Sua surpresa maior e agradável foi a presença de Jorge Amado no vernissage. Diz Carlos Bastos que “Jorge é um líder natural. Ele mudou a minha vida, é responsável por eu morar na Bahia, e graças a ele estou aqui até hoje. Diria que Jorge é um mecenas dos tempos modernos”.

Carlos é um artista muito sensível e esses acontecimentos marcaram muito sua vida, como o incêndio do painel citado acima e a censura exercida sobre sua obra, especialmente os murais que fez para a capela no Parque da Cidade do Rio de janeiro, onde pintou rostos de pessoas conhecidas, representando temas bíblicos, e já faz muitos anos, mas até agora não foi liberado. Também, lembra com tristeza das telas cortadas estupidamente numa exposição que fez na então Biblioteca Pública, que funcionava na Praça Tomé de Souza, em Salvador, onde foi construída a “nova” sede da Prefeitura e o Cemitério de Sucupira.

Também Carybé, um ano mais velho que o homenageado, disse que Jorge é o responsável pela mudança do rumo da sua vida. Sempre viajou muito, e quando o conheceu tinha um emprego de ilustrador e fazia pequenas crônicas de viagem para um jornal argentino chamado Pregon, que veio na época revolucionar o mercado jornalístico de sua terra. Lendo o Jubiabá, no Rio de Janeiro, disse: “Ah! Vou atrás deste cara porque não pode ser verdade o que ele está descrevendo neste romance”.

Nesse ínterim fui aos Correios buscar uma encomenda e recebi uma carta de meu irmão dizendo que o jornal tinha falido. Já estava com dois meses de atraso do meu ordenado. Ele avisava que não mandasse pedir dinheiro porque ele também estava duro. Morava numa pensão e fiz amizade com João Borges, sergipano, que me arranjou uma viagem para Aracaju com o político Josafá Borges, recentemente falecido. De lá segui para Estância atrás do autor de Jubiabá. Fui encontrar Jorge num mafuá. Foi uma decepção. Esperava encontrar um mulato forte, de cabelos encarapinhados destes que tive oportunidade de conhecer no cais e na feira de São Joaquim. Mas, que nada! Encontrei um sujeito magrinho, com um bigode ridículo. Ai fiz o primeiro contato e o início de uma grande e fraterna amizade.Voltei a Buenos Ayres e lá fiz uma exposição dos tipos humanos que desenhei. Demorei por lá alguns anos e retornei ao Brasil. Fui trabalhar na tribuna da Imprensa, no Rio de janeiro, com Carlos Lacerda, fazendo ilustrações e charges. Queriam que fosse diagramador, mas nunca diagramei nada. Até que Rubem Braga fez uma carta me apresentando a Anísio Teixeira. Ao ler a carta, Anísio ficou espantado e disse-me que estava construindo a Escola Parque e lá havia espaço para alguns painéis. Mandou a funcionária que o atendia no gabinete da Secretaria de educação buscar uma folhinha da Esso. Por uma coincidência feliz, a folhinha tinha sido ilustrada por mim. Aí fui ficando e a amizade com Jorge aumentando. Jorge já veio morar na Bahia e fui convidado para ilustrar Quincas Berro D’água, numa edição de luxo. Depois fiz os cenários e figurinos para o balé inspirado no livro que foi apresentado no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.

Para Carybé existe uma identificação perfeita entre as figuras que povoam o seu mundo pictórico e mesmo de relação pessoal e os personagens de Jorge. “É esta gente do povo, rica em sinceridade e alegria. Vivi com esta gente: os bêbados, os mestres de saveiros e de capoeira, as prostitutas, os malandros, enfim, este universo que habita as ruas e ladeiras da Bahia. Com o tempo isto vem se modificando, mas ainda permanece a essência”.

No livro Sumiço da Santa, Carybé foi convidado novamente para ilustrar e colocou a cara de Jorge num personagem muito conhecido na Bahia. O escritor não gostou da brincadeira e “tive que mudar”. Ele prefere não entrar em detalhes, porque o comportamento sexual do cidadão fugia à normalidade e seria perfeitamente identificável. Compreensiva, esta sua atitude de reserva...

Neste instante, Floriano Teixeira entra no bate-papo e diz que também enfrentou uma situação parecida. “Coloquei a cara de Jorge no turco Fadu Abdala, personagem de Tocaia Grande e em Milagre dos Pássaros, onde o escritor aparece com as mãos cheias de frutos. Às vezes, ele não gosta e volta a detalhar as coisas para que possamos traduzir melhor as suas criaturas. Mas sempre conseguimos driblar, e ele e outros amigos aparecem nos desenhos que incorporam seus personagens”, revela Floriano.


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