sábado, 27 de abril de 2024

CINQUENTA ANOS DE ARTE DE GUACHE MARQUES

Guache Marques em seu ateliê,
no bairro do Rio Vermelho.
O artista Guache Marques está completando cinquenta anos de arte e tem uma trajetória de reconhecimento e sucesso da sua produção artística que desde criança manifestou com o seu dom pelo desenho, e atualmente continua buscando novas formas e ferramentas para criar.  É bom lembrar que no período antes de ingressar na Escola de Belas Artes, o que aconteceu no ano de 1974, Guache fazia trabalhos em bico de pena onde o realismo fantástico era muito presente nas obras de vários artistas daqui e de fora. E em 1979 participou do 1º Salão Universitário Nordestino  de Artes Visuais, realizado no foyer do Teatro Castro Alves  quando ganhou o primeiro prêmio com a série Mãe Útero, Mãe Terra e Mãe Dor utilizando a técnica de bico de pena e o estilo realismo fantástico. Tem uma curiosidade aí que ele ficou procurando um nome para a série quando seu amigo o poeta Washington Queiroz de um só fôlego disse: Mãe Útero, Mãe Terra e Mãe Dor.   Ele disse que quando estava na Escola de Belas Artes teve contato com a técnica do pastel seco através do saudoso professor Ailton Lima e produziu muitos trabalhos utilizando esta técnica que no seu entender é difícil de ser executada porque exige o desenho apurado do artista.

O artista Guache Marques com uma
obra recente
.
Durante cinco anos (1980-1985) frequentou as Oficinas de Expressão Artística do Museu de Arte Moderna da Bahia quando teve a oportunidade de participar de um curso ministrado pelo gravador Antônio Grosso, do Rio de Janeiro. Neste período executou diversas gravuras, especialmente litogravuras, técnica “que mais me atraiu pelos recursos de desenho e as possibilidades que ela encerra”. O Antônio Grosso nasceu no Rio de Janeiro, em 1935, e tem um importante papel como professor das mais importantes instituições culturais do país na formação de várias gerações de artistas litógrafos. Ele revela que inicialmente sua arte primava por dar um enfoque social e tinha o homem como elemento central “aglutinador de verdades e paixões tendo como caminho a subjetividade da linguagem surrealista, o que durou o tempo necessário para que me tocasse de outras formas de pensar o homem e seu universo.” Mas, a condição humana não foi abandonada durante a sua trajetória pictórica e assim ele vem conduzindo os seus lápis, pincéis, canetas, as espátulas e outros instrumentos que utiliza para conseguir camadas e texturas que se entrecruzam e se misturam dando às suas telas uma visão da cultura afro de uma forma muito pessoal e bela. Os que gostam de arte quando chegam diante de uma tela pintada por Guache Marques, mesmo com a assinatura não estando facilmente visível, identificam o seu autor porque a obra tem uma marca inconfundível do seu talento nos traços e cores terrosas. Os arquétipos possibilitam a geração de imagens emocionais e os arquetípicos de figuras masculinas exibindo seus dotes de masculinidade, guerreiros.
Guache mostra obra com temática
 hominideos.
Continuando sua trajetória nos anos 80 dedicou-se à gravura trabalhando nas Oficinas do MAM-Ba e também fez uma
série de fotos-desenhos que chamou de “Arquétipos e Arquetípicos” utilizando como base fotografias de Renato Assis retratando os mirorós ressecados pelo sol, que são peixes marinhos, uma espécie de moreia, e que existem em dois tamanhos. Utilizando o grafite, acrílica e nanquim ele conseguiu metamorfosear os peixes em seres humanos e à medida que fazia novos trabalhos os peixes foram ficando mais parecidos com os humanos. Escreveu Guache Marques que “a serialidade conseguida nesses trabalhos dá a ideia da massificação a que chegam as sociedades moderna e contemporânea. Por meio de formas hieráticas e com tratamento expressionista meio grotesco, surgiram esses seres.” As formas hieráticas tem a ver com as coisas sagradas. Nos anos 80 ele participou de feitura de painéis e murais nas ruas de Salvador, dando sua contribuição para a democratização da arte juntamente com artistas oriundos da Escola de Belas Artes, da Universidade Federal da Bahia. Foi nesta época que foram feitos os painéis da Escola de Arquitetura, em 1982; o da Biblioteca Central, também da UFBA, em 1983; do Complexo Escolar Polivalente do Cabula, em 1983; e o Projeto Mural do Rio Vermelho, que era renovado a cada ano no período de 1983 a 1987.

                                                    INFLUÊNCIA AFRO

Na década de 90 aconteceu uma mudança na sua trajetória artística quando redirecionou sua pintura pesquisando os efeitos visuais da cultura baiana, e decidiu tomar como referência os elementos e símbolos da religiosidade afro-brasileira. Foi assim que surgiram suas pinturas trazendo signos das divindades jeje-nagô e as ferramentas dos orixás. Com o passar do tempo estas referências estão fragmentadas numa pintura mais sofisticada, mais trabalhada em camadas de cores, texturas e geometrizações. Nas visitas que tenho feito e acompanhado de perto a produção das artes visuais na Bahia há algumas décadas noto que neste contexto de nossa cultura, esta mistura de raças, cores, gostos, cheiros e religiosidade transitam por muitos artistas cada um com sua pegada diferenciada. Vi umas telas grandes de Guache Marques e quando você as toca a textura com suas cores únicas, que lembram a terra do nosso sertão tão sofrido, parece um couro tal a sua consistência. E alguns  traços são linhas em altos-relevos que delimitam os espaços e de repente se entrecruzam e se misturam e você se perde nesta trama que dá uma visão muito prazerosa do que o artista se propõe. Noutros ele geometriza os espaços com quadrados e retângulos e pinta vários elementos como se fossem obras distintas. Mas, não. Eles se entrecruzam, estão ali intimamente interligados para formar um conjunto único.

Dançarinos  pintados por Guache
Marques exibidos no foyer do TCA
.
Continuando a caminhada chegamos em 2005 quando o Guache Marques se aventurou no mundo da dança. Assim fez algumas instalações no Teatro Castro Alves liderado pelo coreógrafo holandês-piauiense Marcelo Evelyn no projeto “Dançar é...”, e também esta integração da sua arte com o corpo em movimento ocorreu quando trabalhos seus e de outros artistas serviram de inspiração para coreografias no projeto Quarta que Dança, promovido pela Escola de Dança e a Fundação Cultural do Estado da Bahia, no Terreiro de Jesus, Centro Histórico de Salvador-Ba. Paralelamente trabalhava no IRDEB, onde se aposentou fazendo cenários, ilustrações e outros trabalhos ligados à sua especialidade. Durante toda a sua trajetória fez várias exposições individuais e coletivas, e lembro que foi um dos participantes da exposição Geração 70 que organizei com um grupo de jovens artistas oriundos da EBA e que é um marco nas artes baianas. Foi a única vez que vi o Corredor da Vitória engarrafar de tanta gente que compareceu ao Museu de Arte da Bahia para ver a mostra, com uma interrelação de dança, teatro, música e artes plásticas. Enfim, como disse o Guache Marques esta sua trajetória “reflete um processo de busca das formas orgânicas e da geometria, do figurativo ao emblemático.” É nesse universo de experiências que transita, primando pelo rigor das técnicas que usa. Ele é tão organizado que quando cheguei já estava com várias fotos prontas e alguns textos inclusive seu currículo que me foram entregues depois que providenciou um envelope para os acondicionar.

                                       O COMEÇO

Três gravuras  de autoria 
do artista Guache Marques.
O Guache Marques nasceu no dia nove de janeiro de 1954, no bairro Olhos D’água, em Feira de Santana, Bahia. É filho de uma família que não tinha qualquer ligação com a arte. Seu pai Antônio Marques de Jesus era um torneiro mecânico conhecido na Cidade e sua mãe Terezinha Gomes Marques, do lar. O Antônio Gomes Marques que assina Guache Marques mostrou este gosto e pendor pelo desenho desde a escola primária. Um detalhe curioso é que seu pai sentia orgulho dos desenhos que seu filho fazia e sempre mostrava aos parentes e amigos. Tem quatro irmãos, sendo dois homens e duas mulheres. Seu irmão Paulo Marques gosta de Matemática e terminou sendo professor de várias gerações, depois seguiu a carreira de engenheiro elétrico. Fez seu curso primário, ginásio e colegial no Colégio General Osório, em Feira de Santana e gostava de fazer desenhos dos heróis e de jogadores de futebol da época. Quando chovia ele aproveitava a areia fina do chão alisava e assim desenhava os heróis como Durango Kid, Fantasma, Flexa Ligeira e outros. Depois passou jogar futebol de mesa e assim sentiu a necessidade de fazer seus próprios jogadores utilizando restos de material reciclado de janelas de ônibus. Esses botões representando cada jogador no campo ou na mesa de jogar eram de mica e para deslisar passava parafina. Diz com orgulho que quando criança foi campeão duas vezes na sua rua e que ganhava de muitos marmanjos. Sabedores da sua habilidade de quando em vez aparecia um cartaz ou outro trabalho ligado ao desenho e o Guache Marques passou a ganhar alguns trocados que lhe serviam para comprar novos materiais para sua arte que se iniciava ali. Disse que certa vez o professor mandou que fosse ao quadro negro desenhar uma abelha. Ele desenhou a abelha em tamanho grande e foi uma admiração geral na sala de aula, pela qualidade do seu desenho.

Xilogravura de Guache.
Guache Marques lembra que tinha habilidade no desenho artístico e na escola aprendeu a usar os materiais como esquadros, réguas, transferidor, o compasso e assim utilizava estes conhecimentos geométricos também para fabricar seus botões. O seu time era o Bangu, do Rio de Janeiro, que na época tinha um grande elenco com Aladim, Paulo Borges, etc. Felizmente hoje é torcedor do Vitória, time que também sou torcedor. Ele cita determinadas partidas, o placar e os autores dos gols e relembra até do dia em que passou a torcer pelo Vitória. Isto foi  quando o Vitória ganhou de 4 x 2 do Bahia com dois gols de Kleber Carioca e dois de Jorge Bassi. Com quatorze anos de idade e cursando o segundo ano ginasial a sua professora de Matemática chamada Irma Amorim, que era poeta e esposa do arquiteto e agitador cultural Amélio Amorim tomou a iniciativa de levar até o seu esposo e solicitou que arranjasse um lugar de estagiário para o Antônio Marques. Amélio Amorim era um arquiteto muito conhecido em Feira de Santana, inclusive tem um Centro de Cultural na cidade que leva o seu nome. Passou quatro anos trabalhando no escritório e sendo canhoto sentiu dificuldade em manejar os compassos, esquadros e normógrafos aranhas para normografar diversos projetos arquitetônicos. O normógrafo é um instrumento auxiliar do desenho. O tipo mais comum é o normógrafo para desenho de caracteres, porém há outros destinados ao desenho de formas geométricas, como círculos e polígonos. Todos estes instrumentos são feitos para destros, daí a sua dificuldade em se adaptar. Neste período fez sua primeira exposição com trabalhos em bico de pena. Era chamado pela família de Toinho, mas um colega do ginásio passou a lhe apelidar de Guaxinim e isto o irritava na época até que dois anos depois passaram a lhe chamar de Guache.

Quatro bicos de pena do artista .
Disse que chegou a vender alguns bicos de pena, mas perdeu de vista e não sabe
por onde andam e se ainda existem. Com quinze anos de idade passou a ajudar nas despesas de casa e foi estudar à noite e a farrear com os amigos. Isto tirou o foco dos estudos e fez um segundo ano científico fraco. Retomou o terceiro ano e estudou com afinco até que em 1974 foi fazer o vestibular para a Escola de Belas Artes, da Universidade Federal da Bahia. Continuavam a lhe chamar de Guaxinim ou de Guache. Mesmo assim não gostava de nenhuma das duas formas do apelido. Porém, quando já estava na Escola de Belas Artes e era conhecido por Antônio Marques um colega da EBA passou e disse “Guache você por aqui?” Foi aí que o apelido se espalhou na faculdade entre sua turma e não mais conseguiu se separar dele. O vendo questionar o apelido a professora Márcia Magno da EBA o incentivou a assinar Guache Marques porque segundo ela era um nome mais forte e diferenciado que Antônio Marques. Terminou se convencendo, e assim é conhecido no mundo das artes na Bahia como Guache Marques, que hoje ostenta com certo orgulho. Quando foi estudar as disciplinas Desenho Artístico I e Desenho II com o professor Ailton Lima, já falecido, e ele viu seus desenhos em bico de pena e imediatamente o convidou para ser o monitor de suas aulas. Gostava tanto da Escola de Belas Artes que passou seis anos por lá, e decidiu sair com receio de ser jubilado. Confessa que foi um aluno aplicado dos professores Riolan Coutinho, Onias Vieira   Camardelli, Ailton Lima, Jamison Pedra,Juarez Paraíso e muitos outros. Quando se formou foi ser professor orientador de xilogravura na Escola de Belas Artes e passou a ganhar uns trocados para garantir a sua sobrevivência.

Obra ligada a sua influência politico-social.
Lembra que já na década de 80 se afastou de suas influências anteriores e procurou elaborar um discurso plástico próprio que era áspero com preocupação com o social fruto da sua experiência de suas fantasias de criança, a responsabilidade precoce de ajudar no sustento da casa junto com um dos irmãos e a observação das incertezas e opressão política. Disse que “as figuras desenhadas nesse período esmurram o ar como se estivessem à procura da sua própria verdade interior”. Depois de 1982 a 1985 trabalhou fazendo gravuras apesar de sua dificuldade em manusear goivas, pontas secas, ácidos e impressoras de grande porte nas Oficinas do MAM, em Salvador-Ba. Destaca que duas litogravuras que fez neste período um Xangô e um Totem com Cabeças que no seu entender “são precursores de uma fase que já se anunciava: a dos signos afro e sua presença na cultura afro-brasileira”. Prosseguindo em 1983 começou a fazer obras que “despisse o homem de suas vicissitudes, que avocassem a sua contraditória condição humana, do homem como arquétipo de si mesmo.” Foi quando surgiram os trabalhos em foto-desenho redesenhando silhuetas de peixes que encontrou nas fotografias de Renato Marcelo Assis (in memoriam) que foi seu colega quando trabalhava no IRDEB. Com o colega chegou a visitar a Feira de São Joaquim para comprar os peixes ressecados chamados de mirorós que são comercializados para servirem de tira-gostos em feiras livres espetados num palito de madeira. Em 1994 passa a pintar com tinta acrílica sobre tela com cores terrosas e texturas evocando os signos afros, e permanece nesta técnica até hoje e cada dia mostra sua evolução criando texturas e formas muito criativas.

                                     PREMIAÇÕES E EXPOSIÇÕES

Esta instalação foi premiada na I Bienal
do Recôncavo, em 1990.
Em 2004 foi premiado no V Mercado Cultural com uma dessas pinturas com o primeiro prêmio de Fomento as Artes concedido pela UNESCO ; 1º Prêmio em Desenho no I Salão Nordestino de Artes Visuais, no TCA , em 1979 ; 1º Prêmio em Desenho no Gabinete Português de Leitura , em 1976; Menção Honrosa na Bienal do Recôncavo com uma instalação, São Félix-Bahia, em 1990 e Menção Honrosa no I Encontro de Arte da FUNCISA – Fundação Cidade do Salvador, com uma instalação, em 1997. Tem obras nos acervos dos museus: Museu de Arte Moderna da Bahia - MAM-BA, no MAB- Museu de Arte da Bahia, Museu de Castro Alves, em Castro Alves-Ba; no acervo da Associação Cultural Brasil Estados Unidos; na Faculdade de Geologia da Ufba; Gabinete Português de Leitura; Museu Regional de Feira de Santana, CUCA e no Museu de Arte |Contemporânea de Feira de Santana- MAC.

Catálogos de várias exposições.
 Já fez oito exposições individuais e diversas participações em exposições coletivas. Individuais: em 2008 a exposição Signos, no Museu Regional de Arte Contemporânea Raimundo de Oliveira , em Feira de Santana; 2004, 2005 e 2006 Exposições de pinturas em acrílica sobre tela no Projeto Arte/Sofitel da Galeria Prova do Artista, no Hotel Sofitel Costa do Sauipe-Bahia; 2003 -Exposição com Sala Especial, no V Mercado Cultural no Conjunto Cultural da Caixa ,em Salvador-Ba; 2002 – Exposição de Pinturas e Arte Digital, na Galeria ACBEU-Salvador; 1999- exposição Emblemas da Africanidade, na Aquarela Café, no Farol da Barra, Salvador-Ba; 1998 - A Condição Humana, na Galeria da Associação Cultural Brasil Estados Unidos – ACBEU e  em 1974-  Exposição Realismo Fantástico, na Galeria de Arte de Feira de Santana – GAFS, Feira de Santana-Ba.

Os bicos de pena Mãe Útero,Mãe
Terra e Mãe Dor, premiados.
Coletivas: dezenas de coletivas nas cidades de Feira de Santana, Salvador, Cachoeira, na Bahia; Curitiba, no Paraná; no Rio de Janeiro-RJ e fora do país em Macau, na China; Londres, Inglaterra; e Paris, na França e Buenos Ayres, na Argentina. Vejamos: 2023 - Exposição em Homenagem ao Bicentenário do 2 da Independência da Bahia na Galeria Cañizares, Salvador-Ba; 2022 - participou da exposição Encruzilhada no Museu de Arte Moderna da Bahia;2021 -Exposição de Totens chamada de Caminho da Fé em homenagem a Irmã Dulce;2020 - Mostra Virtual de Outdoors da Paulo Darzé Galeria de Artes-Salvador-Ba; 2019 - exposição Muncab Movimento – no Museu Nacional da Cultura Afro Brasileiro, no Centro Histórico – Salvador-Ba; 2019 -  Exposição 90 Olhares para Matilde Matos, no Di Mercatto e na Assembleia Legislativa do Estado da Bahia , Salvador-Ba; 2017 – Exposição Agosto da Artes, no Museu Rodin, Palacete da Artes, Salvador-Ba; 2016 – Exposição Agosto da Artes na Capela do Solar do Unhão, Museu de Arte Moderna da Bahia – Salvador-Ba; 2016 – Exposição 40
Obra feita  na técnica pastel seco.
Anos de Linguagens Contemporâneas, no MAM-BA, Salvador-Bahia; 2016 – Exposição 20 anos do Museu de Arte Contemporânea de Feira de Santana – MAC; 2015 - exposição Tempo & Linguagens, na Galeria Paulo Darzé; 2015 – Exposição Papiro , no Shopping Salvador; 2014 -   Exposição Cores da Bahia , no foyer do Teatro do IRDEB, Salvador-Ba;  2014 – Exposição Formato 30 x 30 na Galeria Carlo Barbosa, no Centro Universitário de Cultura e Arte, em Feira de Santana-Bahia; Exposição Formato 30 x 30 na Galeria Nelson Dahia, no SESC/SENAC, Pelourinho, Salvador-Bahia; 2014 -  Exposição MAC Parade, no Museu Rodin, com 120 esculturas de macacos pintadas por artistas, Salvador-Bahia; em 2013 - participou de sete coletivas;2012 Exposição Circuito das Artes do Museu de Arte da Bahia, Salvador-Ba;2011 - de mais quatro coletivas; 2010 - de dez exposições inclusive a de Londres chamada de Brasilians on The Movie; 2009 - de mais quatro; 2008 -  de sete coletivas; 2007 até 1985  - de muitas  coletivas entre as quais a de 1985- da Geração 70, no Museu de Arte da Bahia, que foi um marco na história das artes visuais na Bahia. Seguiram várias outras exposições.

sábado, 20 de abril de 2024

A ARTE DE NÚBIA ESPINHEIRA TEM A FORÇA DO AFRO

Núbia Espinheira com uma das últimas
obras em seu ateliê.
A artista Núbia Espinheira carrega no seu sobrenome uma grife das artes baianas que é o seu saudoso pai Itamar Espinheira que faleceu em 2010, aos 88 anos de idade. Foi neste ambiente de arte que ela passou a sua infância no bairro da Pituba, numa casa com amplo quintal no meio de mais sete irmãos. Nesta época a Pituba tinha sido uma fazenda de Juventino Silva e que rapidamente foi se urbanizando, e hoje é um dos bairros mais conhecidos da classe média de Salvador-Ba. Ela é normalmente uma pessoa  reservada  e me recebeu em seu ateliê no apartamento onde mora no Horto Florestal, em Salvador. Organizada já tinha separado os quadros que pintou, inclusive os mais recentes e todos os catálogos, recortes de jornais e revistas onde estão publicados artigos sobre sua trajetória artística. Confesso que fiquei surpreso positivamente com a força e a criatividade de Núbia Espinheira que procura exercitar a sua arte com disciplina buscando experimentar novos materiais para que possa depois utilizá-los em suas obras. Vi dispostos numa parede vários pequenos trabalhos feitos em grafite e pastel seco em seus exercícios diários buscando aprimorar sua técnica e o desenho. O ato de pintar precisa ser exercitado com muita frequência
Rostos  surgem no meio a uma composição 
refinada de cores e formas  da artista .
para aumentar a habilidade e criatividade do profissional. Aquele que deseja ser artista tem esta obrigação de sempre estar buscando aprimorar e utilizar novas ferramentas. Núbia  normalmente trabalha com acrílica sobre tela utilizando pincéis e espátulas. Lembrei que seu pai era um mestre na arte de pintar utilizando as espátulas aquelas com cabos de madeira e das pontas finas. Já a Núbia utiliza espátulas mais largas, sem cabo e isto lhe permite trabalhar em grandes telas preenchendo espaços mais generosos com sua paleta de cores.  Estou falando do pai  o Itamar Espinheira porque ela teve uma convivência muito próxima e profícua com ele e seu gosto pela arte passa por esta sua relação, inclusive chegaram até a expor juntos. Sabemos que é muito difícil para os filhos de pessoas que se destacaram em uma área do conhecimento, da cultura ou do mundo empresarial se sobressair. Porém, alguns conseguem tranquilamente como é o caso de Núbia Espinheira que tem uma produção totalmente diferenciada da deixada por seu pai.

Outra obra de Núbia que nos leva
a apreciar a figura humana.
Fez seu curso primário na Escola Nossa Senhora da Luz, no bairro da Pituba, e depois o ginásio e o colegial no Colégio Estadual Manoel Devoto, que é um colégio público localizado no bairro do Rio Vermelho, em Salvador-Ba. Em 1974 prestou o vestibular para a Escola de Belas Artes, da Universidade Federal da Bahia. Foi uma escolha natural já que seu pai havia  lhe inspirado a seguir esta carreira. Lembra que o pai não tinha outra atividade a não ser a pintura. Vivia de pintar enfrentando dificuldades, é claro, porque tinha de sustentar oito filhos . Era disciplinado e diariamente pintava e fazia suas próprias telas, até mesmo o chassis e umas travas que costumava colocar atrás das telas para melhor esticar o pano. Ela observava todo este ritual do pai e talvez por isto é também disciplinada em sua arte. Em alguns momentos que independeram da sua vontade teve que interromper sua produção, principalmente quando enfrentou um problema de saúde e em seguida o pai adoeceu e ela foi cuidar dele. Mas, logo depois já estava diante do cavalete desenhando, pintando e prosseguindo construindo a sua trajetória artística.

Obra feita em pastel seco  sobre papel.
Fez um curso de pós graduação em audiovisual com uns especialistas canadenses que vieram ensinar no Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia – IRDEB onde ela trabalhava fazendo ilustrações e outros serviços audiovisuais onde permaneceu por mais de três anos. Casada com o economista e escritor Armando Avena viajaram para o Chile onde ele foi passar uma temporada estudando na Comissão Econômica para a América Latina e Caribe – CEPAL, depois elaborou um projeto que foi premiado. Mesmo estando em outro país ela não largou a sua pintura, e chegou a fazer uma exposição de suas obras em Santiago, no Chile. Ao retornar trabalhou na ilustração de livros, diagramação e até teve uma rápida passagem pela propaganda. Em 1993 foi convidada pelo artista Francisco Liberato e integrar a equipe que estava trabalhando no desenho animado  de longa metragem Boi Aruá. Diariamente ia para o set de filmagens que ficava na Estrada Velha de Ipitanga, em Salvador-Ba desenhando, filetando e fazendo os contornos das cenas. Levou uns dois anos até o término do filme. Interessante saber que o filme Boi Aruá, de Chico Liberato é baseado numa obra de Luís Jardim O Boi Aruá que conta a história de um fazendeiro de nome Tibúrcio cujo poder é desafiado sete vezes pela aparição do Boi Aruá. Era grande o seu desejo de capturar o boi preto e misterioso que se apresentava metafórmico sendo ora um simples boi e ora uma espécie de Exu, depois como uma constelação e até incorporava o próprio fazendeiro/vaqueiro. Já no filme finalmente, o boi se revela ao vaqueiro Tibúrcio. Tem músicas do maestro Ernst Widmer e de Elomar. A estética do O Boi Aruá é baseado nas xilogravuras do cordel.

                                                                         SUA ARTE

A temática afro surge na maioria
das obras
.
A arte produzida por Núbia Espinheira tem uma linguagem própria. Ela se utiliza da cultura local e mistura cores e traços criando uma atmosfera que perpassa o expressionismo com alguns sinais do figurativo a caminho do abstracionismo. É uma pintura que nos encanta e dá prazer em ver, em buscar em cada detalhe algo que se identifique com a nossa Bahia cheia de cores, sons e encantos. Me disse que sua busca visa realizar um trabalho autoral a cada quadro que pinta deixando ali sua marca do aprendizado que acumulou através das vivências e do tempo que passou e passa diante de uma tela nua que lhe desafia a deixar ali a sua passagem, as suas pegadas,  a sua criatividade, as suas emoções e experiências. 

Tive o prazer de ser colega de sala no Curso de Ciências Sociais na então Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal da Bahia, que funcionava na Avenida Joana Angélica, do seu primo Gey Espinheira.  E agora me deparei com um texto escrito por ele para a exposição de pinturas que Núbia fez intitulada Os Segredos de Ifá onde está escrito: “A pintura jamais é passiva, ela fala com o espectador, questiona e responde: conversa. -Você sempre soube disto, não Núbia? Esses quadros, esses temas... Uma atmosfera encantada. São seres extraordinários em nossa vida cotidiana. Os odus, os filhos de Orumilá. Eles estão em toda parte, eles nos leem, eles revelam a nossa sorte. Os odus conhecem os segredos: “Um fala de nascimento, outro da morte, /Um fala dos negócios, outro da fortuna, / Um fala das guerras, outro das perdas, / Um fala da amizade, outro da traição, / Um fala da família, outro da amizade, /Um fala do destino, outro da sorte.” O texto do Gey Espinheira continua falando dos odus com seus segredos distintos, e a artista traz em suas telas imagens de suas ferramentas e de seus símbolos que tanto aprendemos a apreciar e a respeitar.

Quando da exposição que Núbia Espinheira fez na NR Galeria de Arte, em 2001, da minha saudosa amiga Julieta Isensée, a July, a grande colunista social da Bahia por muitos anos, o professor e pintor Fernando Freitas Pinto escreveu um texto. Vejamos um trecho: “São vinte e um  trabalhos em acrílica sobre tela, com colorido intenso, integrando formas e cores, nas manifestações do nosso carnaval e do candomblé. Os quadros de Núbia Espinheira primam pela espontaneidade, pelo ritmo e pela variedade das cores. O amadurecimento do traço e a figuração cada vez mais abstraída são algumas das características dessa nova fase da artista”

Vemos nesta obra  tendência 
à abstração .
Núbia Espinheira continua pesquisando e aprimorando seu desenho e sua arte de pintar. Vemos que mesmo inspirada na  cultura baiana e nas manifestações populares e religiosas ela com seu jogo de formas e cores tem uma tendência natural a abstrair as figuras para que não fique uma coisa chapada como acontece com muitas obras que estamos acostumados a ver por aí. O espectador de suas amplas telas é presenteado com um colorido forte e alegre , com traços e outros elementos geométricos que se misturam e  se cruzam onde a figura humana muitas vezes aparece timidamente. Sua pintura tem a sensualidade desta gente vinda do continente africano com suas danças e seus cânticos e o colorido forte das suas vestes. Tudo isto está presente na obra de Núbia Espinheira numa forma muito bem resolvida, que nos dá um prazer inexplicável de ir passando os olhos nos imensos espaços espatulados com maestria.

Numa reportagem publicada na Relíquia tem um pequeno trecho de um texto de Jorge Amado que aqui reproduzo porque mostra um pouco deste fazer da Núbia Espinheira. Vejamos: “Nessa terra tudo é misturado – anjos e exus, o barroco e o agreste, o branco e o negro, o mulato e o caboclo, o candomblé e a igreja, os orixás e os santos, a opulência e a miséria, tudo misturado. Os sentimentos e os ritmos, os mistérios também”.

                                                  EXPOSIÇÕES

Bela obra com a temática afro.
Fez sua primeira exposição em 1976 na Galeria Cañizares, e em 2004 expôs nos Estados Unidos na Móbile Art Gallery, em Boston, no estado de Massachusetts. Exposições Individuais: 1992- na Frente Verso Galeria de Arte, Salvador-Ba; 1995 expôs na ADA Galeria de Arte, Salvador-Ba; 1998 na Galeria ACBEU – Associação Cultural Brasil Estados Unidos, Salvador-Ba; 2001 na NR Galeria de Arte com o título de Mítica e Magia, Salvador-Ba. Exposições Coletivas; 1976- Galeria Cañizares, Salvador – Ba; 1977 – Semana de Arte, Escola de Belas Artes da UFBA, Salvador-Ba; 1978 – Atelier Los Naranjos, Santiago do Chile, Chile; 1980- Panorama Galeria de Arte, Salvador-Ba; 1986 – Exposição na Câmara dos Vereadores, Salvador-Ba; 1988 – no Foyer do Teatro Castro Alves, A Criança na Visão do Adulto, Salvador-|Ba; 1988 – Fundação Cultural Gileno D’ Velírio , Cruz da Alma, Bahia ; 1988 – Arte Nata Galeria de Arte, Salvador-Ba;1989 – Galeria Beco da Arte, Salvador-Ba; 1990 – Centro de Memória das Águas, Salvador-Ba; 1992 – Eco 92, no Rio de Janeiro, RJ; 1994 Shopping Barra – Artistas Contemporâneos, Salvador-B|a;1995 – ADA Galeria de Arte, Coletiva de Maio , Salvador-Ba;1997 – Barcelona Espaço Cultural, Salvador-Ba;1998 – Galeria Cores do Brasil – São Paulo,SP;2000- Shopping Lapa – Mostra Touromaquia, Salvador-Ba e 2005 – Espaço Cultural do Ateliê, Acervo jornal Tribuna da Bahia, Salvador-Ba.

 

 

 

 

 

 

sábado, 13 de abril de 2024

A SAGA DA CERAMISTA BAIANA SELMA CALHEIRA

A Selma Calheira com alguns
dos seus Homens de Barro.
Vou falar hoje de uma mulher com pouco mais de 1,60 que nasceu numa fazenda de cacau na época em que a produção baiana era respeitada e a comoditie tinha uma alta valorização no mercado internacional. O dinheiro não era problema para os cacauicultores baianos que viviam viajando entre o Rio de Janeiro e Paris como fossem tomar um ônibus ou trem para a periferia de Salvador ou outra cidade brasileira.  Foi neste ambiente que nasceu em quatro de janeiro de 1958 a Selma Abdon Calheira filha de Rômulo Teotônio Calheira e d. Enésia Abdon Calheira. Eles moravam numa fazenda chamada de Terra Boa e ela tinha mais seis irmãos. Seus avôs eram imigrantes libaneses e na época chovia muito na região do município de Ibirataia, localizado na região cacaueira, distante 344 Km de Salvador. Selma lembra da dificuldade de frequentar a escola primária porque iam da fazenda até a cidade montados em burros e cavalos para estudar o primário, isto por volta da década de 60. Então sua mãe decidiu morar na cidade e dois anos depois veio a falecer, e Selma tinha apenas nove anos de idade. Assim seu pai se viu com a dupla missão de tocar os negócios da fazenda e também cuidar de sete filhos menores. Foi então que os filhos maiores passaram a ajudar a cuidar dos menores, e lembra que ela cuidou de três irmãos menores por algum tempo. Como seu pai tinha certo prestígio os amigos e políticos locais o incentivaram a se candidatar a prefeito e depois de alguma relutância ele resolveu aceitar o desafio e tornou-se prefeito. Com quinze anos de idade era a Selma Calheira quem acompanhava o pai nas solenidades fazendo o papel da primeira dama.

Selma em cima de um andaime trabalhando 
na cabeça de uma das esculturas.
Quando perguntei de onde veio este dom artístico de dar vida ao barro inerte, transformando em esculturas monumentais e objetos de design foi aí que a Selma Calheira lembrou que sua genitora Enésia Abdon Calheira sempre procurava fazer belos arranjos utilizando materiais que encontrava na fazenda como flores, palhas, ramos, gravetos e folhas de palmeira. “Ela fazia arranjos incríveis e a nossa casa sempre vivia arrumada como se fosse um dia de festa”, falou com um misto de orgulho e saudade de sua mãe. Ela também quando criança começou a se interessar pelo barro como acontece com muitas crianças da zona rural que fazem panelinhas, bois, cachorros e outros animais que têm contato para brincar. Este contato com o barro desde criança para a maioria se perde no tempo, mas a Selma ao contrário quando adulta foi se reencontrar com o barro e nunca mais parou. Hoje é uma ceramista de nome nacional e internacional.

Pessoal que trabalha na cerâmica durante a
cerimônia da Queima que  faz anualmente.
Voltando ao pai prefeito ela bem jovem decidiu criar uma biblioteca para que as crianças da Cidade e mesmo os adultos encontrassem livros para aumentar seus conhecimentos. Foi assim que fundou a primeira biblioteca pública de Ibirataia, interior da Bahia, e passou a dirigir de 1975 a 1977. De lá para cá a biblioteca foi mudando de lugar a cada nova administração municipal até que a fecharam. Selma ficou muito chateada, mas soube recentemente que vão criar um Centro Cultural na Cidade e que a biblioteca vai voltar a funcionar. Ela não tem ideia se o acervo da antiga biblioteca ainda existe guardado em algum lugar.

Esculturas de negras. Selma
sofre com as cópias de suas 
obras por inescrupulosos.


Já morando em Salvador enquanto estudava o segundo grau fez alguns cursos livres de pintura na Galeria Panorama e em seguida estudou na Escola Baiana de Arte e Decoração – Ebade, em 1977. Depois foi morar no Rio de Janeiro na casa de um amigo de seu pai o médico Othon Fernandes que a recebeu como uma filha, conta ela. O objetivo era o vestibular para Arquitetura, terminou cursando Licenciatura em Educação Artística, na Faculdades Benett, no Rio de Janeiro, turma de 1982. Como o triste episódio da vassoura de bruxa arruinou a produção de cacau na Bahia seu pai enfrentou alguma dificuldade financeira e a Selma se viu forçada a voltar. Foi aí que começa a sua saga. Ela não voltou. Passou a procurar emprego, e foi vender livros, mas não gostou deste trabalho. Resolveu fazer pequenos objetos de cerâmica e também a comprar alguns produtos para revender. Assim foi sobrevivendo até que um dia procurou a direção da Faculdades Integradas Benett e tentou uma bolsa de estudos para terminar o seu curso. Conseguiu uma bolsa parcial e em troca trabalhar numa espécie de ong o Instituto Cultural do Povo, em 1982, que funcionava o bairro da Gamboa, no Rio de Janeiro, localizado atrás da Central do Brasil e era mantido pela faculdade ligada à igreja metodista. No Instituto tinham oficinas de várias profissões e lá encontrou-se com a ceramista Rosa Werneck e passou a trabalhar e ensinar aos alunos como mexer com a argila.

Um dos amplos galpões da área de produção 
de sua cerâmica na cidade de Ibirataia-Ba.
Foi se empolgando e partiu em 1981 para o Parque Lage onde sempre são oferecidos cursos livres de pintura, escultura, cerâmica e outras atividades artísticas. Queria estudar com a professora e ceramista Celeida Tostes. Como acontece na vida sempre as coisas não acontecem como a gente espera. Não havia mais vaga. Então se matriculou no curso de escultura com Jayme Sampaio. Porém, pelas suas habilidades ganhou a confiança do professor que ensinava no turno matutino e a Celeida Tostes no vespertino. Assim passou a ser  assistente de Jayme Sampaio e o professor deixava as chaves da oficina com ela que ficava trabalhando e entrava pelo turno vespertino. Com esta sua disposição e demonstração de suas habilidades na arte da cerâmica terminou conseguindo estudar com a Celeide Tostes e também a ser sua assistente, o que ela tanto almejava. A professora Celeida veio a falecer em 1995 aos 74 anos de idade.

Selma trabalha no torno em
uma das suas esculturas.
Trabalhou muito pesquisando argilas e decidiu participar de exposições. Criou a Oficina Arte do Fogo e passou a trabalhar com alguns ajudantes. Foi nesta época em 1983 que o famoso cineasta brasileiro Cacá Diegues estava montando sua equipe para as filmagens de Quilombo. Por sorte procuraram a Celeida Tostes que a indicou, e o pessoal da produção do filme a procurou porque ele queria fazer vários objetos para servir de cenário para as filmagens. Ela foi para o bairro do Xerém, no Rio de Janeiro, onde estava o set de filmagens e partiu em busca de oleiros para encontrar a argila apropriada para produção das peças, além de convidar ferreiros, cesteiros e outros artesãos para compor o grupo afim de produzir, potes, gamelas, moringas, cestas de vários tipos e objetos de ferro. O filme de Cacá Diegues é uma coprodução brasileira e francesa e foi concluído em 1984. O roteiro é baseado nos livros Ganga Zumba, de João Felício dos Santos e Palmares, de Décio de Freitas. Teve um razoável sucesso de bilheteria.

Por causa do trabalho foi conversar com a Diretora das Faculdades Integradas Benett a professora Maria Augusta no sentido de conciliar as atividades do curso com o trabalho na produção das filmagens. Porém, dois professores não concordaram e ela teve que trancar a matrícula na faculdade. Passou sete meses no

Em cima do andaime Selma e   
trabalha numa das esculturas
da série dos Homens de Barro.
set das filmagens, porque chovia muito na região e surgiram outros problemas. O filme foi se arrastando e dois meses antes de sua conclusão ela saiu. Decidiu com o dinheiro que ganhou nas filmagens comprar alguns equipamentos e passou a colocar seus produtos em lojas de design e decoração. Foi quando sofreu um acidente ao manipular uma das máquinas, perdendo um dedo. Mas, isto não o desestimulou. Juntamente com a artista plástica Milú Byington abriu em 1984 um ateliê no bairro da Barra da Tijuca, que esta época era pouco habitada e por lá passaram três anos. Chamou o ateliê de Cores da Terra onde fizeram muitos eventos, seminários sobre cerâmica primitiva e elementos naturais. Era um ponto de encontro de artistas e intelectuais. Houve uma divergência com a sócia e resolveram acabar com o ateliê. Diz que produziu esculturas imensas, que não sabe o seu paradeiro, depois da ocupação das terras onde ficava o ateliê. Já durante o governo de Leonel Brizola em 1984 foi convidada pelo Serviço Social do Comércio – SESC para participar do Projeto Emprego e Renda com o objetivo de identificar talentos na favela do Borel e Rio das Pedras, em Jacarepaguá Nesta época foi morar no Rio das Pedras, que fica perto do Borel, e lá conheceu uma senhora nordestina de 70 anos, chamada Maria do Barro que viajava para várias partes do país fazendo oficinas de cerâmicas ensinando os jovens e adultos a trabalhar com o barro. Forneceu a ela uma máquina e outros materiais e confessa que esta convivência foi uma experiência muito rica. Maria de Lourdes Cândido, a Maria do Barro, morreu aos 82 anos de idade em 2021.

Seis Homens de Barro.
Existe uma penitenciária feminina que fica no bairro de Bangu chamada de Talavera Bruce onde permaneceu ensinando por um período Programa de Ressocialização. Depois foi trabalhar no bairro de Valença, no Rio de Janeiro, no resgate das culturas perdidas pesquisando e ensinando manejar o barro. Disposta como sempre alugou em 1987 um sítio localizado em Pedra de Guaratiba, que é um bairro que fica na zona oeste do Rio de Janeiro e lá construiu um forno e passou a produzir. Logo depois foi procurar as lojas chics de design e  apresentava e expunha as suas peças, principalmente nas lojas localizadas em São Conrado, no Rio de Janeiro, e em seguida expandiu sua ação até São Paulo. Isto garantia a sua sobrevivência com dignidade até que conheceu o seu marido, o alemão Franz Rzehak e ficou grávida. Outra mudança drástica. Resolveu voltar em 1989 para sua terra natal Ibirataia e sua grande preocupação era como iria escoar a sua produção, ou seja, como as peças que ia produzir chegariam às lojas de decoração e design  do eixo Rio-São Paulo? Mas, foi em frente e com ela vieram cinco caminhões carregados com suas tralhas, máquinas, fornos, barro e uma infinidade de coisas. Lembra Selma Calheira que o acesso a fazenda era problemático porque chovia muito na região e as estradas de terra ficavam intransitáveis com tanta lama. Foi quando um primo seu lhe ofereceu de empréstimo uma casa no distrito de Japumirim, município de Itagibá. Recomeçou a fazer colares, pequenas esculturas, contratou alguns ajudantes e passou a vender em Salvador e outras cidades brasileiras. Não contava com qualquer logística e tinha que embalar, etiquetar, tirar notas fiscais etc.  

Esculturas em tamanhos diferentes que 
apresentou numa feira recente no
Centro de Convenções em Salvador.
Disse que foi muito difícil este recomeço, principalmente porque estava com uma criança para cuidar. Ia pegar caixas vazias em lojas e supermercados para colocar suas peças para entregar aos clientes. Numa dessas viagens para São Paulo a fim de mostrar suas esculturas de barro em casas de design e decoração conseguiu vender as Lojas Evolução que comprou quase tudo que ela levou e fez outro pedido. Em 1990 decide juntamente com o marido Franz Rzehak criar a empresa Cores da Terra, na Fazenda Barra do Sapucaia, em Ibirataia, município baiano, com a intenção de fomentar a cultura da cerâmica, o desenvolvimento de múltiplos em cerâmica e ferro, dando também início ao processo de formação e capacitação de novos profissionais. Foi participar da Feira do Sebrae, em Alagoas. Era um evento a céu aberto no estacionamento de um shopping Center. Vendeu tudo que levou. Foi novamente para São Paulo participar da Feira Profissional e foi um sucesso. Já tinha doze assistentes, inclusive alguns deles eram menores aprendizes. Daí em diante em 1992 participou da Feira Grifttes-92 que era a principal feira de design e em 1994 foi para Nova York e a princípio não tinha conseguido vender ou receber uma encomenda porque não havia compradores. 

Selma mostra alguns objetos produzidos;

Foi quando um jornalista a descobriu e fez contato com alguém da famosa loja de departamento Bloomingdale’s. Selma foi lá com um irmão mostrar suas peças  e gostaram dos objetos e fizeram um pedido grande a ponto do irmão que o acompanhava perguntar: Você vai ter condições de entregar tudo isto? Voltaram e trabalharam muito e entregaram todo o pedido. Decidiu que deveria continuar participando das feiras e voltou nos anos 94 e 1995. Atualmente na medida do possível sempre retorna porque lá faz contatos com grandes clientes da área do design. Cresceu tanto que chegou a empregar 350 pessoas. Começaram a surgir alguns problemas inclusive de cópias de suas peças aqui e no exterior. Entrou com alguns processos, porém a Justiça é muito lenta e só lhe trouxe prejuízos até agora. Disse que em 2019 na Feira Maison & Objet, em Paris, encontrou cópias de suas peças em três stands , sendo dois  de origem indiana e ucraniana.

Uma visão do stand no Centro de Convenções.
Continua participando de feiras aqui no Brasil como as feiras Home & Gift e a Têxtil & Home, em São Paulo, que “são feiras dedicadas a promover as últimas tendências do mercado, conectar expositores e profissionais do ramo, além de fornecer um ambiente propício para a realização de negócios e parcerias comerciais.” Foi participando de uma feira em Nova York que ela conseguiu contato com um fornecedor de Bruxelas que hoje é um grande comprador e que leva suas obras para lojas de vários países europeus e dos Estados Unidos. Já fez peças para uma empresa brasileira de perfumes com milhares de peças e hoje exporta através a Design-Gardeco para o continente europeu. Resolveu diminuir a sua produção e hoje trabalha com cerca de sessenta assistentes. Conta hoje com a ajuda de seu filho Igor Calheira Rzehak  que é físico e resolveu assumir a direção da empresa. Sua preocupação maior é fazer grandes esculturas de barro de até cinco metros ou mais. São os Homens de Barro e ela disse que já fez oitenta e que pretende fazer mais. É o seu projeto de criar a Cidade dos Homens de Barro, um museu a céu aberto onde as pessoas poderão visitar e que pretende realizar no seu atual espaço uma espécie de centro cultural.

                                                       OS HOMENS DE BARRO

Foto aérea do complexo Cores  da Terra.
Sua cerâmica tem cerca de 2.800 metros quadrados de área construída  com galpões
apropriados para a produção de múltiplos e toda uma estrutura necessária. Hoje ela trabalha com cerca de sessenta pessoas e vem produzindo e enviando suas peças para várias cidades brasileiras e para a Europa e Estados Unidos. Porém, seu sonho maior  ainda não se realizou totalmente. O objeto é a construção da Cidade dos Homens de Barro onde ela pretende colocar mais de uma centena de grandes esculturas que chama de “esculturas figurativas primitivas” com até mais de seis metros de altura e outras menores para que possa ser uma atração turística de contemplação das cerâmicas como obras de arte num ambiente arborizado e preservado que é um pedacinho da Mata
A ceramista e algumas esculturas da série
Homens de Barro.
Atlântica e com toda a estrutura necessária para uma visitação pública. As esculturas na sua visão representam poeticamente o protótipo de um ser de muita força. Foram e são desenhados por ela e retratam a história fictícia de pessoas simples e corajosas que enfrentam muitas dificuldades para manter uma sobrevivência com dignidade. Selma faz questão de afirmar que respeita os materiais e usa pigmentos naturais criados em seu ateliê. Será um espaço aberto para visitação das esculturas gigantes que funcionará como um platô ou mirante das artes, onde o visitante terá uma visão privilegiada do ponto urbanizado e mais alto da cidade. É importante ressaltar que todo este grandioso trabalho é feito artesanalmente e ela investe muito no aprendizado das pessoas da cidade de Ibirataia e de cidades vizinhas. E "as técnicas de modelagem e queima, têm suas origens em resgates culturais, como a cultura indígena e a valorização da natureza nativas o que vem gerando resultados belíssimos”. Informa a Selma Calheira que algumas tintas utilizadas antes do objeto ir à queima são originadas de diferentes tipos de argilas, fruto de pesquisas realizadas pelos designers.”